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Chegou a hora de mudar tudo na BBC, a mãe de todas as televisões?

O conglomerado de canais de rádio e TV ainda é sustentado pelo público que paga uma taxa anual salgada pelo direito de assistir televisão

Por Vilma Gryzinski 19 jan 2022, 07h31

Imaginem receber uma carta oficial ameaçando o destinatário de processo na justiça e multa salgadíssima pelo crime de assistir televisão. Se não der a mínima, corre o risco de ter um fiscal batendo na porta.

Parece saído de uma distopia stalinista, mas acontece no Reino Unido, onde a British Broadcasting Corporation, a legendária BBC, vive de um licenciamento anual pago por todos os indivíduos que tiveram uma televisão em casa. 

E não é barato: 158 libras, equivalente a quase 1 280 reais por ano.

Uma espécie de anistia para os idosos acima de 75 anos, devido à necessidade de informação turbinada pela pandemia, foi cancelada em junho do ano passado. E dá-lhes cartinhas para os aposentados (algumas isenções foram mantidas).

Agora, o governo de Boris Johnson anunciou, através da secretária da Cultura, Nadine Dorries, que a taxa foi congelada até 2024. Em 2027, pode ser eliminada de vez.

“Acabaram-se os dias de idosos sendo ameaçados de prisão e oficiais de justiça batendo nas portas. Chegou a hora de discutir e debater novas formas de financiar, apoiar e vender o excelente conteúdo britânico”, disse a ministra.

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Será que isso vai mesmo acontecer? Os elefantes burocráticos criados com dinheiro fácil tendem a se transformar em fortalezas inexpugnáveis e a BBC, com todas as distorções, ocupa um lugar único no imaginário coletivo não só do reino como dos países que recebem as programações feitas pelo World Service em mais de 40 idiomas. As badaladas do Big Ben, que anunciavam os antigos programas de rádio, hoje ampliados para todos os canais digitais, ainda ecoam simbolicamente pelo mundo.

A BBC, um conglomerado de notícias e entretenimento em todas as plataformas de transmissão, completará 100 anos em outubro, tendo sobrevivido ao modelo de emissora nacional que parece tão superado (em muitos outros países, o estado ainda banca as diferentes “vozes” oficiais, mas o contribuinte não percebe que está pagando isso através dos impostos e não de uma taxa específica).

De emissora rigorosamente imparcial, um modelo de jornalismo equilibrado para todo o mundo, a BBC mudou muito. O mundo está mais dividido entre direita e esquerda tal como entendidas na era contemporânea e a emissora, como tantas outras, pende para o lado da esquerda.

As reações ao anúncio de Nadine Dorries refletem isso. O Guardian, leal guardião de todos os esquerdismos, só faltou vestir luto. As publicações mais para o outro lado em geral ficaram desconfiadas. Não acreditam que um governo enfraquecido como o de Boris Johnson seja capaz de implementar uma mudança tão grande – ou mesmo de sobreviver até ela.

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Muitos veem, não sem alguma razão, uma vingancinha política do primeiro-ministro, cuja cabeça é pedida veementemente pela BBC, com especial gosto agora que o “partygate”, as happy hours feitas na sede do governo durante o confinamento, apresenta uma chance real de que seu próprio Partido Conservador se insurja contra ele.

O pendor politicamente correto e anticonservador, fora as nada disfarçadas flechadas contra Israel,  já fez a BBC ser apelidada de Al-BBzeera, uma brincadeira com a Al Jazeera. 

Os embates entre a BBC e políticos conservadores remontam à sua própria criação. O primeiro diretor-geral, John Reith, tinha pavor de Winston Churchill – no que era amplamente correspondido.

A antipatia durou a vida toda e, depois da guerra, Reith chegou a dizer sobre o papel titânico de Churchill na resistência ao nazismo: “Outros teriam feito melhor e mais barato”.

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Churchill nunca disse efetivamente que se a BBC cobrisse a luta de São Jorge contra o dragão, torceria pelo dragão, mas, além de um discurso parodiando como seria a mitológica luta em termos modernizados,  fez uma comparação nessa linha a respeito da greve geral de 1926, quando era ministro das Finanças: Reith “comportava-se imparcialmente em relação aos grevistas e à nação. Eu disse que ele não tinha direito de ser imparcial em relação ao incêndio e aos bombeiros. A nação estava sendo chantageada”.

As críticas da direita à BBC aumentaram depois do Brexit, um tema em que a cortina da imparcialidade se esgarçou de vez. A cara de velório dos apresentadores depois da vitória por quase 52% da saída da União Europeia praticamente resumiu tudo. Além de tomar nada disfarçado partido, a BBC também estava despreparada para cobrir um resultado que dava por impossível.

Em seus piores momentos, a BBC vive na bolha, como tantas outras instituições jornalísticas: todos seus integrantes são de classe média, estudaram em bons colégios e pensam da mesma forma. Um alienígena lhes causaria menos desconcerto do que um inglês de cidade pequena que vota no Brexit e em Boris Johnson (este, em retração até nesse público).

Em seus melhores momentos, os programas sobre história, arte, ciência e natureza são praticamente imbatíveis. O entretenimento também tem criações brilhantes, muitas vezes reformatadas no mercado americano. Dança dos Famosos, na versão brasileira, é um programa original do BBC Studios, o braço comercial do conglomerado.

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“Inevitavelmente, se você não tem 285 milhões de libras, vai ter menos programas e menos serviços”, queixou-se o diretor-geral Tim Davie, referindo-se à projeção do rombo que o congelamento da taxa provocará.

Jornalismo custa caro e a perspectiva de uma BBC desdentada é triste em qualquer ponto do espectro político em que alguém se situe. Mas viver em um universo paralelo em que opiniões dissidentes soem como blasfêmia e sejam simplesmente ignoradas não é bom para nenhuma instituição jornalística.

Em 2020, a Corporation, como dizem os íntimos, reduziu os salários de estrelas como o ex-jogador Gary Lineker, que tem um programa de futebol, e da apresentadora Zoe Ball. A folha salarial para os “talentos” foi cortada em 10%.

A crise do corte de financiamento coincide com outra, muito maior, que é a concorrência avassaladora das redes sociais, o que não encerra uma questão permanente: quando um vulcão explode no fundo do mar em Tonga (ou qualquer outro acontecimento telúrico), você confia mais na informação do Facebook, do Instagram ou da BBC?

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