Câmara dos Estados Unidos: divisões deixam lições para a direita
Disputas internas que explodem em público, líderes fracos e minoria barulhenta mostram problemas que não são só do Partido Republicano
Oportunista, sem princípios, pouco digno de crédito e incapaz de encarnar a real oposição ao governo. A descrição cai bem em muitos políticos, e de muitos países, não apenas em Kevin McCarthy, que passou pelo vexame de quinze votações até ser eleito presidente da Câmara dos Representantes.
A oposição das duas dezenas de rebeldes, apelidados por membros do próprio Partido Republicano de Taliban Twenty, teve que ser debelada a golpes de telefonemas de Donald Trump e concessões infinitas. Entre elas: um único deputado passa a ter direito a pedir votação contra o speaker, como os americanos chamam o ocupante da presidência.
Isso significa que McCarthy vai ter uma vida dura, talvez até impossível.
É claro que os democratas assistiram de camarote, “comendo pipoca”, enquanto republicanos se dilaceravam, chegando num momento ao quase entrevero físico.
A certa altura, Trump chegou a ser ridicularizado. “Sinto muito por meu presidente favorito”, disse Lauren Boebert, que se tornou a cara dos talibãs, juntamente com Matt Gaetz, quando disse que não ia ceder aos apelos de Trump.
A crise mostrou divisões mais profundas do que as tradicionais dentro do Partido Republicano – refletindo impasses na direita em geral.
Embora pareçam poodles se comparados aos pitbulls americanos, os conservadores britânicos também estão em crise, traumatizados por um governo que aumentou impostos num momento de inflação e encolhimento econômico, contrariando o próprio cerne dos princípios liberais exatamente no país onde foram sistematizados no pensamento político e econômico.
“O Partido Conservador está lutando não apenas contra uma derrota arrasadora, mas também contra a perspectiva de sua destruição permanente”, exagerou Sherelle Jacobs no Telegraph. “Pela primeira vez desde a virada do século XX, existe um perigo real de que a direita britânica se fragmente”.
Pelas pesquisas mais recentes, se a eleição fosse agora o Partido Trabalhista teria 49% dos votos e os conservadores encalhariam em 23%. Nada menos que uma hecatombe.
Até os mais crédulos duvidam dos cinco compromissos assumidos pelo primeiro-ministro Rishi Sunak: cortar a inflação (de 10,7%) pela metade, retomar o crescimento econômico, reduzir a dívida pública, diminuir as filas no sistema de saúde e acabar com a imigração clandestina.
São objetivos perfeitamente antenados com um governo de centro-direita, mesmo que muitos acreditem que Rishi é um falso conservador e a base só não tenha migrado para outro partido porque não existe opção.
Do outro lado do Altântico, controlar a dívida de vertiginosos 31 trilhões de dólares e a fronteira com o México, por onde quase cinco milhões de migrantes irregulares passaram desde que Joe Biden assumiu a presidência, deveriam ser os dois temas que unem os republicanos.
As divisões mostradas pelo angustiante processo de eleição do presidente da Câmara mostraram que “deveriam” virou algo muito longe da realidade. A ala nacional-populista já passou a perna até em seu inspirador máximo, Donald Trump – um processo que também está acelerado no Brasil, agora com consequências espantosas.
Conservadores, moderados e libertários, as principais correntes internas, perdem feio quando deixam de ter princípios comuns.
A direita populista é dominante nas redes sociais e nela prevalece a ideia de que os republicanos convencionais são na verdade adversários – ou até traidores. Fazem parte do sistema, que para esta tendência é o maior dos defeitos.
Uma pesquisa do Pew Research Center dividiu o eleitorado republicano em grupos que vale a pena entender. O maior deles, com 23%, é chamado de “religião e bandeira”: firmemente conservadores, crentes no excepcionalismo americano e no papel da religião, eleitores e admiradores de Donald Trump. Não é difícil ver qual parte do eleitorado brasileiro se parece com eles.
Ligeiramente menor é a direita populista, especialmente preocupada com assuntos migratórios. Acha que os bancos e grandes corporações se beneficiam de disparidades econômicas. Maciçamente trumpista.
Os chamados conservadores comprometidos são 18%. Prevalece entre eles a crença no conservadorismo econômico, o que no Brasil seria chamado de liberalismo. Votaram em Trump, mas são mais suscetíveis a outros nomes. Acham que Ronald Reagan foi o melhor presidente no passado recente.
Os “laterais estressados” são 15%: tendem a sustentar os princípios do liberalismo econômico, mas podem votar no Partido Democrata. São os que mais têm problemas financeiros.
Reunir todas essas tribos e ainda conquistar independentes ou democratas hesitantes, além de ter um partido que faz frente unida depois das primárias, é o que um candidato republicano a presidente precisa para ser eleito em 2024.
Segundo a maioria das pesquisas – obviamente precoces demais -, Biden vence Trump em vários cenários. Em compensação, perde para Ron DeSantis, o governador da Flórida.
Tradução: o eleitorado quer sangue novo, talvez ideias novas também, mas o establishment oferece a opção entre Biden, de 80 anos, e Trump, com apenas quatro anos a menos.
Partidos disfuncionais traem o eleitorado conservador ao qual deveriam servir e até em países onde são mais sólidos podem ser varridos do mapa. Herdeiros do gaullismo, o Republicanos da França têm hoje apenas 62 deputados entre os 577 da Assembleia Nacional. Sua candidata a presidente, Valérie Pecresse, não chegou aos 5% dos votos, lembrando o caso de Simone Tebet. O eleitorado de direita foi todo para Marine Le Pen.
A direita, obviamente, abriga várias tendências, mas se elas viram facções acabam dando o tom bananeiro que pairou sobre o Congresso americano. E deixa eleitores órfãos e revoltados, uma combinação explosiva que produz resultados maléficos e autodestrutivos.
Quando a fina camada que separa a civilização de seu oposto se rompe, a sociedade sofre um traumatismo brutal.