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Autenticidade: quem tem, tem

Público usa sensores além da lógica para captar sinceridade

Por Vilma Gryzinski 9 nov 2024, 08h00

Completamente obscurecido pelo grande reality show da eleição americana, um processo interessante se desenrolou na semana passada na Grã-Bretanha: a escolha da pessoa que vai liderar o Partido Conservador, o mais antigo do mundo, e recompor sua posição no quadro político para salvá-lo do que parece uma extinção anunciada. Kemi Badenoch, a escolhida, teria tudo para perder a eleição final, feita por cerca de 130 000 membros comuns do partido. Num país em que se cultivam a contenção e a polidez como forma de evitar conflitos, ela é brava, briguenta e mercurial, a ponto de jornalistas britânicos brincarem de apostar com quem ela vai perder a paciência primeiro.

Exatamente por causa disso, comprou as brigas mais perigosas do mundo no momento. Entre elas, contra o silêncio obrigatório, imposto pelas regras do wokismo, em relação a intervenções hormonais e cirúrgicas em menores de idade que decidem querer mudar de gênero. Importante: é proibido sequer discutir se mudanças tão drásticas são realmente indicadas para todos os casos ou se alguns demandariam tratamento terapêutico para entender todas as dimensões psicológicas envolvidas. Kemi entrou nessa briga como uma guerreira iorubá, tradição que leva na bagagem como descendente de nigerianos. Transmitiu assim uma mensagem tácita de autenticidade. Mesmo sob o risco de ser chamada pelo pior dos insultos do mundo woke, o de transfóbica, tomou posições que deixariam outros políticos intimidados.

“A capacidade de se conectar com o público é mercadoria valiosa no mundo da política”

Essa capacidade de se conectar com o público por ser fiel a si mesmo é uma mercadoria valiosa no mundo da política. Amem-nos ou odeiem-nos, Lula e Bolsonaro passam uma forte impressão de autenticidade — atenção, não significa necessariamente fidelidade à verdade dos fatos. Ambos chegam a chorar em público, o oposto do modelo de masculinidade serena e envolta na toga imemorial da autoridade que se espera dos líderes de nações. Essas características compõem o que os americanos chamam, em latim, de gravitas. Não são, claro, exclusivamente masculinas. Margaret Thatcher era a própria encarnação dela, com seus “olhos de Stálin e voz de Marilyn Monroe”, na descrição de François Mitterrand, com quem ela se dava muito bem.

A incapacidade de transmitir autenticidade, apesar da esplêndida embalagem, atrapalhou Kamala Harris numa campanha em que deveria nocautear Trump. Mesmo com marqueteiros brilhantes, Harris ficou no meio do caminho entre qual arquétipo assumir: o maternal, da líder política que cuidaria do país inteirinho como uma mãezona, ou o da guerreira que protege a população dos males da inflação e do trumpismo. Apesar da relação extremamente flexível com a verdade, Trump foi fiel a si mesmo: nem um único eleitor pode acusá-lo de esconder o jogo.

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Seria interessante ver duas mulheres em posições-chave do mundo anglo-saxão, uma ultraprogressista, como Harris, outra indomitamente conservadora, como Kemi Badenoch — ambas, já que é obrigatório lembrar, de origem negra. “Autenticidade significa apagar a distância existente entre o que você acredita firmemente por dentro e o que revela ao mundo exterior”, define o psicólogo americano Adam Grant, vendedor mais refinado no infindável balcão da autoajuda. Foi o que faltou a Kamala Harris.

Publicado em VEJA de 8 de novembro de 2024, edição nº 2918

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