“Estamos cavando e dando risada”. A frase do militar identificado apenas como Lesha resume tudo: obrigado a fazer aquilo que em geral os soldados mais odeiam, cavar trincheiras em território inimigo, ele e seus companheiros estavam achando tudo ótimo. Uma ou outra estátua simbolizando o poder russo? Pois lá se foi um Lênin que montava guarda bem no centro de Sudja, uma das dezenas de localidades tomadas na operação surpresa desfechada pela Ucrânia no último dia 7, sem que os russos conseguissem desfechar uma contra-ofensiva.
“Tínhamos que fazer alguma coisa”, disse Lesha ao Spectator sobre o impasse da guerra, com a Rússia disposta a sacrificar mil soldados por mês em troca de pequenos mas sólidos avanços na linha de frente da região de Donbass. Embora sem manobras espetaculares, a iniciativa estava com os russos. Agora, são dois flancos de ataque em território russo. Na noite passada, foi lançada uma onda de drones contra Moscou – todos derrubados, mas mesmo assim perturbadores.
Não que os ucranianos não imaginem o que os espera pela frente – “Eles vão vir com tudo para cima de nós”, nas palavras do soldado Lesha.
Mas poderia haver mais doce vingança do que invadir território da região circundante da cidade de Kursk, como fizeram os ucranianos, e ouvir os russos – os russos! – reclamando de uma invasão territorial, da presença de soldados estrangeiros em seu solo e do sofrimento da população civil? Como se não tivessem sido eles que fizeram tudo isso, com violência infinitamente maior.
PAGAR PARA VER
“Eles estão nos bombardeando há dois anos e meio. Hoje mesmo fomos bombardeados. Estou feliz que agora estejamos lutando em território russo? Estou em êxtase”, disse ao Spectator a dona de um café perto da fronteira com a Rússia, identificada apenas como Sveta.
Como virou moda dizer, a invasão ucraniana, embora em pequena escala, ainda mais considerando-se o tamanho da Federação Russa, o maior país do mundo, mudou a narrativa.
Vladimir Putin não está mais com aquele sorriso de gato que acabou de pegar o rato, ao contrário, parece consumido pela raiva – uma manifestação rara num mestre do autocontrole e da projeção de uma imagem de pleno poder, sem as palhaçadas dos tiranetes latino-americanos.
Volodymyr Zelensky, que tem se mostrado um adversário não só à altura do todo-poderoso Putin, como moralmente superior, uma vez que a justiça está do seu lado, enfiou docemente a faca: a Ucrânia pagou para ver o blefe do chefão do Kremlin e o “ingênuo e ilusório conceito” de linhas vermelhas caiu por terra.
“O mundo viu que tudo nessa guerra depende só de coragem – da nossa coragem, da coragem dos nossos aliados em apoiar a Ucrânia”.
Coragem é o que os ucranianos, em condições tão adversas, demonstraram inúmeras vezes, embora nos últimos meses tivesse começado a se instalar uma espécie de desânimo coletivo.
TRAUMA NACIONAL
Mas fora mudar a narrativa, qual é o objetivo dos ucranianos? Zelensky falou em criar uma zona tampão e a destruição de três pontes sobre o rio Seim demonstra que os ucranianos pretendem se instalar na área já conquistada, mas não ir além dela – e obviamente dificultar o envio de reforços russos.
Seria, na opinião de muitos analistas, um trunfo para levar a uma futura mesa de negociações, uma forma de não deixar os russos se safar – ou pelo menos não completamente – com a Crimeia, ocupada desde 2014, os territórios já longamente tomados de Donetsk e Lugansk e mais os nacos conquistados depois da invasão de fevereiro de 2022.
Todo mundo sabe que a Rússia tem uma enorme tolerância a perdas, mas ver seu solo ocupado pela primeira vez desde a II Guerra Mundial, mesmo que a área seja muito pequena, é um trauma nacional.
Defender a Mãe Rússia é a função precípua mais elementar de qualquer líder russo. Ninguém sabe disso melhor do que Putin, que deu de se passar por historiador e inventou um elaborado e absurdo compêndio para “comprovar” que a Ucrânia tem que fazer parte do que chama de Mundo Russo.
GOLPE MORTAL
A brava resistência dos ucranianos estilhaçou essa falsa argumentação histórica e a incursão na região de Kursk chacoalhou uma situação que parecia congelada, com tendência a recuos, lentos, mas inexoráveis, das forças da Ucrânia.
“É melhor que a guerra seja no país deles do que nas nossas cidades”, disse a Cristian Segura, correspondente do El País, um soldado identificado como Roman, voltando do novo fronte.
A entrevista foi em Sudja, a pequena cidade de cerca de cinco mil habitantes agora totalmente esvaziada.
“A melhor estratégia para a guerra é adiar as operações até que a desintegração moral do inimigo torne possível e fácil desfechar o golpe mortal”, disse Lênin, o homem cuja estátua remetendo à era soviética foi derrubada na localidade russa.
Os ucranianos parecem ter decidido não se deixar tomar pela desintegração moral. E o golpe mortal pelo qual os amigos de Putin tanto torcem está desarticulado
Ah, sim, e o líder do Sul Global que vem fazendo uma ponte entre Putin e Zelensky é o indiano Narendra Modi.