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Aborto faz mal a Macri e Argentina volta a estado natural: crise

Do dólar alto à lei abortada, tudo que pode dar errado está dando errando para o presidente; nem o incrível caso do “caderno das propinas” ajuda 

Por Vilma Gryzinski 10 ago 2018, 15h35

Uma coisa é preciso reconhecer: nenhum outro país é capaz de ter crises como as da Argentina.

Só para dar uma ideia: o “debate maduro” sobre o aborto que Mauricio Macri propôs, imaginando faturar alguns pontinhos desesperadamente necessários com uma legalização que parecia garantida, terminou em quebra-quebra.

O debate aconteceu, o Senado rejeitou o projeto de lei e manifestantes favoráveis ao direito de matar fetos fizeram uma violência básica, com fogueiras e outras exibições de maturidade em frente ao Congresso.

Como a imprensa, argentina e de outros países, e as duas principais figuras políticas do país, Macri e Cristina Kirchner, concordaram no único tema em que teriam convergência, parecia tudo garantido. Com a votação no Senado, rolou um clima de derrota na Copa do Mundo.

Mas a decepção dos pró-aborto evidentemente não é o único fator, nem de longe o mais importante, da recaída argentina no vórtice que de tempo em tempo precipita o país em crises existenciais excepcionalmente tempestuosas.

Ainda longe dos casos mais notórios, simbolizados pelo presidente que fugiu do palácio de helicóptero (Fernando de La Rúa) ou do o ditador que deixou a Casa Rosada debaixo de uma chuva de moedas, como se faz com os traidores (Leopoldo Galtieri), Macri pode se considerar ferrado.

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Se chegar até a eleição presidencial do ano que vem sem faltar nenhum pedaço importante, já será uma conquista. A hipótese de reeleição é altamente improvável.

Diário da propina

Em todo o mundo, o dólar forte está complicando a vida de países com moeda fraca e fundamentos podres. Mas Turquia, Irã ou, claro, Brasil, não viveram momentos recentes de otimismo como aconteceu quando Mauricio Macri foi eleito, numa vitória surpreendente sobre a quase imbatível máquina peronista.

Inflação, stress cambial permanente, aumento de tarifas públicas sem a contrapartida do equilíbrio econômico e um deprimente apelo ao FMI – como nos velhos e maus tempos de descontrole -, acabaram com o prestígio de Macri.

Eleito como um outsider – milionário que se tornou figura pública como presidente de um clube de futebol -, Macri não tem sucessor.

Como a alternativa continua a depender da altamente repudiada Cristina Kirchner, a Argentina está de novo num de seus infames becos sem saída.

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Mesmo tendo sido eleita senadora, Kirchner não está de forma alguma impossibilitada de acabar no sistema prisional.

A investigação de corrupção que consome o país atualmente deriva dos “cadernos da propina”.

O caso é espetacular até pelos padrões brasileiros. Em primeiro lugar, contraria o princípio básico de que corrupto não passa recibo.

Os cadernos são, literalmente, cadernos, como os de escola, com espiral. Neles, um motorista a serviço dos principais arrecadadores do casal Kirchner, Oscar Centeno, anotou durante anos como entravam e saiam as famosas sacolas de dinheiro.

O percurso não é nada surpreendente: o dinheiro, em dólares, evidentemente, vinha de empreiteiras de construção civil e da área energética beneficiados por contratos públicos.

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E ia diretamente para o apartamento particular ou a residência presidencial do casal Kirchner. Irrigava campanhas e a vida boa de toda a escala de corruptos.

De forma minuciosa e quase obsessiva, ocupando todas as linhas e margens inferiores, Centeno escrevia, escrevia e escrevia: nomes, quantias, percursos. Em conjunto, os cadernos são uma espécie de diário da corrupção.

Pelo Corolla que dirigia a serviço de Roberto Baratta, ele próprio ex-motorista de táxi subordinado ao grande operador do kirchnerismo, Julio de Vido, e depois outros carros, passaram cerca de 160 milhões.

O cálculo é dos promotores que receberam os cadernos, sigilosamente enviados em janeiro e checados em todos os detalhes possíveis pelo jornalista Diego Cabot, do La Nación.

Centeno anotava nomes completos, endereços, quantias e até o peso das sacolas de dinheiro. Uma vez ganhou uma mala vazia de presente.

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A todo, são seis cadernos espiral em tamanho grande, um bloco de anotações e um caderno azul de capa dura. Centeno, que foi preso esta semana, registrou um trajeto “normal” do seu chefe, Baratta, até a Quinta de Olivos, a residência presidencial, ocupada na época por Néstor Kirchner.

Enquanto “esperava no carro com as sacolas (de dinheiro), contei; havia maços de 100 000 dólares; cada sacola continha: uma tinha 800 000 (oitocentos mil dólares) e na outra havia 700 000 (setecentos mil dólares).”

As sacolas foram retiradas por Baratta e entregues ao secretário particular de Néstor Kirchner. Quando as quantias passavam de dois milhões de dólares, De Vido, ministro do Planejamento, acompanhava a entrega pessoalmente.

Doze envolvidos já foram presos, incluindo De Vido, enrolado em todos os outros casos de corrupção sistêmica do kirchnerismo.

Obra antológica

Roberto Baratta trabalhava no Ministério do Planejamento, tendo começado a carreira depois de pedir emprego num bar a Kirchner, então quase um desconhecido em campanha presidencial (levou 22% dos votos e não precisou ir ao segundo turno: Carlos Menem, destroçado por uma das crises cíclicas, entregou a rapadura antes).

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Preso desde o começo do mês, Baratta não deixou amigos. Aperfeiçoou o estilo brutal do time Kirchner e tratava a pontapés executivos de empresas de gás natural que não seguissem as ordens do governo.

Segundo a descrição do La Nación, “por seu gabinete passou grande parte da relação com a Venezuela e toda a importação de combustíveis”. Não é nada difícil deduzir os desdobramentos.

Oscar Centeno, o motorista anotador, parou de registrar o fluxo de corrupção por algum tempo, depois da morte de Néstor Kirchner, mas retomou as atividades.

Foram dez anos de anotações. Entre outros desdobramentos, a Justiça apreendeu os pen drives sobre recursos de campanha de Juan Manuel Abal Medina, chefe de gabinete de Cristina Kirchner e filho de um dos principais dirigentes dos Montoneros, o grupo armado do peronismo de esquerda.

Com recursos intelectuais e operacionais superiores, esta corrente superou vastamente em corrupção seus grandes rivais, o peronismo de direita.

Num país de embates ideológicos incompreensíveis e escritores extraordinários, o humilde Oscar Centeno, que anotava tudo porque achava “incrível” o tamanho da corrupção e muito provavelmente foi quem entregou os cadernos ao jornalista do La Nación, produziu uma antológica obra escrita.

Pena que seja da antologia da corrupção, o mal que a todos consome.

O chororô de manifestantes e jornalistas que se transformaram em militantes da causa abortista é um intervalo rápido nessa obra sem fim.

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