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A vacina particular é ética

E serve de exemplo, se não interferir em programas públicos

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 4 jun 2024, 14h35 - Publicado em 8 jan 2021, 06h00

O que mais convenceria os ressabiados com a vacinação contra a Covid-19 do que ver pessoas mais ricas tirando dinheiro do bolso para pagar pela própria imunização? “Se é bom para eles, deve ser bom para mim também” é uma das alavancas lógicas mais comuns de equalização social em todos os terrenos. Esse é apenas um dos argumentos a favor das vacinas pagas administradas por instituições particulares. Desde que não interfiram em absolutamente nada nos programas públicos (nos países que os têm, é claro) e não provenham do estoque destinado a eles, as “vacinas dos ricos” contribuiriam, ainda que esparsamente, para desafogá-­los e desaguariam no objetivo comum, o de vacinar pelo menos 70% da população e mostrar para esse vírus reincidente quem pode mais, ele ou nós.

As questões éticas desencadeadas pela pandemia são provocativas, quando não de arrancar cabelos metafóricos, principalmente quando envolvem disparidades de riqueza. Harald Schmidt, professor de ética na Universidade da Pensilvânia, conseguiu sair da obscuridade acadêmica quando defendeu a ideia de que a vacinação nos Estados Unidos privilegiasse negros e outras minorias para “equilibrar o jogo”, considerando-se que são desproporcionalmente atingidos pela doença. Schmidt se encrencou — ou fez bonito para os colegas, dependendo do ângulo — ao dizer que as pessoas mais velhas, prioritárias em todas as hierarquias de vacinação por estar no grupo de maior risco (com 80% a 90% das mortes por Covid-19 na faixa de pacientes acima de 65 anos), são “mais brancas” por pertencerem ao grupo com maior acesso a tratamentos de saúde.

“ ‘Se é bom para eles, deve ser bom para mim também’ é uma das alavancas lógicas mais comuns de equalização social”

No plano macro, a natural desconfiança dos humanos com os que têm muito, em especial quando operam numa esfera em que outros têm pouco demais, aumentou com a informação de que a concentração de riqueza deu mais um salto quase incompreensível para nós, mortais comuns. As 500 pessoas mais ricas do mundo aumentaram sua fortuna em 1,8 trilhão de dólares no miserável 2020 que acabamos de encerrar. Cinco pessoas têm hoje mais de 100 bilhões de dólares (Jeff Bezos, Elon Musk, Bill Gates, Bernard Arnault e Mark Zuckerberg). Todos fazem extensivas contribuições de combate à pandemia, especialmente Bill Gates. Pobrezinho: em vez de ser reconhecido como grande benemérito, é o acusado número 1 pelos conspiracionistas de ter os mais sinistros propósitos com o vírus e a vacina. Gates com a manga levantada tomando a vacina dificilmente convenceria os que a veem com suspeição. Em 1956, quando um erro de fabricação de laboratório inoculou milhares com o vírus ativo da poliomielite, provocando uma natural rejeição, Elvis Presley, no furor dos 21 anos, foi convocado para uma vacinação pública, para dar exemplo. Não é inconcebível que uma fila de influencers tomando a vacina paga tivesse efeito parecido agora. Estabelecendo-se, por motivos autoexplicativos, que todos os políticos abririam voluntariamente mão do privilégio desde o início.

Publicado em VEJA de 13 de janeiro de 2021, edição nº 2720

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