Imitar a forma de falar de Margaret Thatcher é uma das coisas mais fáceis para qualquer atriz: para ascender politicamente, a primeira-ministra, filha de um dono de mercearia, mudou o sotaque e lhe deu um toque artificial.
Na Inglaterra, talvez mais do que em qualquer outro lugar do mundo, o modo de falar define imediatamente a origem geográfica e social das pessoas.
Para a atriz Gillian Anderson, foi uma moleza emular, com algum exagero, o discurso quase hierático de Thatcher.
O resto, pende para o grotesco, como se a Margaret Thatcher dela fosse personagem de um programa humorístico, onde as características da pessoa satirizada são exageradas de propósito.
Em várias entrevistas, Gillian Anderson ficou dando desculpas indiretas, com medo de ter humanizado Thatcher, que continua a ser uma bruxa malvada para todos os progressistas do reino e até de fora dele.
Quando ela morreu, em 2013, as esquerdas comemoraram com dança nas ruas, ao som da música do final de O Mágico de Oz: “Ding dong, the witch is dead” – a bruxa está morta.
A série The Crown evidentemente não é um documentário e seu autor, o escoladíssimo Peter Morgan, do filme A Rainha, usa fatos conhecidos e outros presumidos, além da liberdade artística para apresentar acontecimentos históricos de modo resumido ou anacrônico.
Em The Crown, onde entra na intimidade da família real, ele tem na atual temporada três personagens femininos tão ricos que parecem inventados: além de Margaret Thatcher, a rainha Elizabeth e a princesa Diana.
Todas transcenderam, por motivos diferentes, o espaço que deveriam ocupar.
Elizabeth virou o próprio sinônimo de rainha – a palavra em si já basta para pensar nela. Em 84 anos de vida pública, desde que o tio abdicou fazendo do irmão o portador da coroa e da menininha de 12 anos a herdeira do trono, conseguiu passar uma imagem de total dedicação ao dever e poucas revelações sobre sua própria personalidade – talvez porque não tenha tanto a mostrar.
Diana tornou-se um ícone popular que chegou a fazer sombra sobre a própria Elizabeth – para não mencionar o marido, transformado, cada vez em que apareciam juntos, num negligenciado acessório.
De jovem de família aristocrática, com pouca instrução e cabecinha de vento, a adorada “princesa do povo”, o título que recebeu do esperto Tony Blair, que era primeiro-ministro quando ela morreu aos 36 anos, Diana mereceria uma série toda dela – nenhum dos filmes sobre sua vida chegou perto de refletir o fenômeno que foi.
Em muitos sentidos, Margaret Thatcher foi o oposto das duas. Chegou onde chegou por direito próprio, não de berço ou casamento, quebrando todas as barreiras que encontrou pelo caminho.
Que a filha do dono do mercadinho chegasse estudar química em Oxford, já seria um prodígio para sua época.
Muito mais foi se transformar num caso pioneiro de líder política do Partido Conservador, uma mulher de direita votada pela classe operária, tão pouco intimidada na defesa dos princípios do liberalismo que sacou um livro de Hayek da bolsa (A Constituição da Liberdade) e avisou a tímidos proponentes de mudanças no partido que “isso” era o código inabalável de suas convicções.
Era odiada pelos adversários políticos pelo que fez – fechar as minas de carvão subsidiadas pelo governo, deixar um líder do IRA morrer em greve de fome, esmagar a Argentina nas Malvinas e retribuir a colaboração de Augusto Pinochet.
E também pelo que não fez: transigir em seus princípios, adoçar o tom para parecer menos imperiosa, perder nas urnas (deixou o governo depois de ser apunhalada por seu próprio partido).
A Thatcher verdadeira jamais choraria na frente da rainha por causa do sumiço do filho durante um rally num deserto. Tampouco daria lições de moral para a rainha, como na série.
Mas realmente fazia a ela reverência mais extrema, quase tocando o joelho no chão. E também passava suas roupas e as do marido, além de fazer comida para os ministros e outros convidados.
Na sua posição mais controversa, a de resistir às sanções contra a África do Sul da época do apartheid, não foi movida por interesses comerciais nem por simpatias pelo regime de segregação racial, tendo sido possivelmente influenciada pela mentalidade da época das disputas geopolíticas com a União Soviética.
De qualquer maneira, é um assunto no qual a palavra final pertence a Nelson Mandela: “Devemos muito a ela”.
Para criticar a política econômica de Thatcher, Peter Morgan criou até um diálogo entre a rainha e o desempregado que conseguiu entrar em seu quarto para chorar as mágoas.
Também tirou do contexto a situação com uma das melhores frases de Margaret Thatcher. Ao explicar que sua política de fazer com que desempregados trabalhassem nos serviços sociais tinha por objetivo tirá-los da pobreza e disseminar as vantagens da poupança.
“Ninguém se lembraria do Bom Samaritano se ele tivesse somente boas intenções; ele tinha dinheiro também”.
E quem se lembraria de Margaret Thatcher se ela fosse apenas uma política autoritária e inflexível mostrada em The Crown, não a revolucionária conservadora que foi?