Futebol, golfe, Fórmula 1, boxe, campeonatos de hipismo — o talão de cheques metafórico dos sauditas está fervendo. Com dinheiro sobrando e gente faltando, parece até normal uma oferta como a de 330 milhões de dólares para o francês Kyllian Mbappé sair do PSG e ir jogar no Al Hilal, competindo com o rival Al Nassr, onde Cristiano Ronaldo impulsiona os fãs e a venda de camisetas, embora com vários de seus conhecidos problemas.
Não é normal. Só saindo totalmente do padrão que reina mesmo entre os mais cobiçados esportistas do mundo é possível convencer os estrelados nomes a enfrentar a vida num país em que até recentemente as mulheres não podiam dirigir nem mostrar o rosto por baixo das duas camadas de véus negros, comerciantes apanhavam de vara se não fechassem as lojas para as cinco preces diárias e a temperatura pode chegar a 52 graus.
Transformar as regras, a imagem e o futuro do reino onde o petróleo é a única, e extraordinária, fonte de renda faz parte de um projeto de ambição de impressionar até mesmo a China, a grande promotora de obras gigantescas que espelham sua ascensão a potência quase hegemônica. A diferença, obviamente, é que a China tem 1,4 bilhão de habitantes e uma fabulosa e diversificada máquina de produção. A Arábia Saudita tem 36 milhões, dos quais treze milhões são trabalhadores estrangeiros, trazidos — e vigiados — para fazer o que os mimados cidadãos sauditas consideram inferior demais.
E tem petróleo, um combustível que inevitavelmente acabará substituído por matrizes mais limpas. O ambicioso plano pós-petróleo é alimentado pelo príncipe Mohammed Bin Salman, uma mistura difícil de decifrar de visionário, reformista e monarca absolutista, capaz de promover projetos revolucionários e mandar matar e esquartejar um quase insignificante adversário político como Jamal Kashoggi, exilado que escrevia uma nada famosa coluna mensal no Washington Post.
MBS, como todo mundo o chama, é um enigma — e não esperem esclarecimentos de jornalistas como Thomas Friedman, o colunista do New York Times que faz visitas frequentes ao país e assim resumiu sua opinião sobre o príncipe: “Apenas um tolo prognosticaria o sucesso de seus planos reformistas, mas só um tolo torceria contra eles”.
O desejo de agradar salta aos olhos, principalmente pela má fama do príncipe.
O petróleo e geopolítica não conseguem, sozinhos, mudar essa fama, mas MBS tem um projeto de transformar tudo isso até 2030. Uma das colunas de sustentação desse projeto é uma visionária cidade no deserto, construída como uma longa linha acompanhando o contorno litorâneo com tudo o que de melhor, mais tecnológico e mais ambicioso que o dinheiro pode comprar — e a conta de 500 bilhões de dólares não é nada barata.
Bin Salman quer fazer, numa escala infinitamente maior, o que emirados vizinhos como Dubai conseguiram: atrair turistas e moradores permanentes com grandes projetos arquitetônicos e instalações onde os estrangeiros tenham uma bolha futurista que não se conecta com os princípios ultraconservadores ainda vigentes na sociedade.
Tem a seu favor a parcela mais jovem da população que endossa a abertura — e os que não a aprovam ficam bem quietos, possivelmente tramando uma guinada que acabaria com a festa, e talvez com a vida, do príncipe. Tem também um fundo soberano de 700 bilhões de dólares e uma coleção de multimilionários operando em total sintonia com o regime. Os times de futebol foram artificialmente criados, com dinheiro do fundo soberano.
É desses recursos que saem as verbas para comprar o passe de jogadores como Cristiano Ronaldo, Sergio Ramos, Karim Benzema e talvez, agora, Mbappé. Messi preferiu um ambiente muito mais ameno e por isso foi para Miami, jogar no Inter, caminhando para o encerramento da carreira com uma quantia que pode chegar a 150 milhões de dólares.
É bem menos do que receberia da Arábia Saudita, mas entre South Beach e Riad, realmente, não há o que discutir. Sem contar que o novo time de Messi tem como um dos sócios David Beckham — bem melhor, para a imagem, do que sauditas de camisolão branco e passado obscuro.
Do ponto de vista dos americanos, o grande lance esportivo dos sauditas foi comprar os três campeonatos de golfe do país de uma vez só, com o objetivo de unificá-los. Provocou uma espécie de choque nacional. Como um esporte venerado, e praticado por pessoas de todas as classes sociais, ao contrário dos países onde é coisa de rico, pode ser literalmente dominado por sauditas?
Em escala menor, o mesmo choque foi sentido na Inglaterra quando o fundo saudita comprou o Newscastle, em 2021.
Árabes multimilionários no mundo do futebol já são um fato comum — o próprio PSG hoje é do fundo manejado pelo emir do Catar —, mas o príncipe Bin Salman quer se tornar não apenas um investidor, mas um player, um influenciador e manipulador. Os métodos usados pelo Catar para conseguir a Copa do Mundo são brincadeira de amadores perto do que MBS pode fazer.
A seu favor, ele tem as mudanças geopolíticas nas quais está se tornando um jogador atilado, vendo nelas as chances de libertar a Arábia Saudita da total dependência do guarda-chuva de segurança provido pelos Estados Unidos. Pelos ricos campos de petróleo do reino do deserto, os Estados Unidos foram à guerra com o Iraque, em 1991. Não podiam permitir que Saddam Hussein, tendo engolido o Kuwait com facilidade e voracidade, ameaçasse também as reservas sauditas.
Bin Salman está chacoalhando as bases desse mundo. Aproximou-se da China e da Rússia e, dramaticamente, normalizou relações com o Irã, a teocracia xiita com a qual os sauditas viveram anos de conflito, inclusive com uma guerra terceirizada, a do Iêmen.
É possível abominar abusos hediondos como a morte de Khashoggi e reconhecer o tamanho e a importância das ambições de Bin Salman para seu país? É possível entender que um único jogador, como seria o caso de Mbappé, tenha um valor de 330 milhões de dólares — 70 a mais do que foi pago por Neymar?
A disputa entre “primos”, o emir do Catar e o poderoso príncipe saudita, esquenta mais a briga. Outros times estão interessados do fabuloso francês: Manchester United, Chelsea e Tottenham. Mbappé tem a seu favor, fora a excepcional habilidade e os 24 anos, um trunfo imbatível: a mãe, Achraf Hakimi, uma empresária de futebol de origem argelina com fama de implacável.
Não é novidade o uso do futebol como arma geopolítica, um instrumento poderoso de soft power. Mohammed Bin Salman está virando um atleta do gênero.