Maria Carolina Maia
Rachel é uma mulher solitária que todos os dias pega o trem de Ashbury para Londres. A viagem inclui uma breve parada em Witney, onde ela espia, do seu assento, o jovem casal que vive em uma casa junto à estação. De tanto os observar, deu a eles nome e personalidade – Jess e Jason, seus personagens, são um casal modelo. Rachel, logo vamos descobrir, é divorciada e alcoólatra. Além disso, tem uma mente fecunda, claro. Também veremos que ela toma o trem diariamente porque finge trabalhar em Londres, quando na verdade está desempregada. É em uma dessas idas para a capital inglesa que, dentro de uma biblioteca, ela lê a notícia de que Megan Hipwell, aquela a quem chama de Jess, está desaparecida. Rachel sente, então, uma irrefreável vontade de se envolver no caso. Foi com esse enredo de thriller, aliás já adquirido pelo estúdio americano Dreamworks, que a jornalista Paula Hawkins, nascida e criada no Zimbábue mas radicada em Londres desde os 17 anos, se transformou em fenômeno de vendas logo na sua estreia na literatura. A Garota no Trem (tradução de Simone Campos, Record , 378 páginas, 35 reais), o romance de Paula que chega agora ao Brasil, atingiu o topo das principais listas de livros mais vendidos do mundo, incluindo a do jornal The New York Times, e quebrou a marca de O Símbolo Perdido, o best-seller de Dan Brown, no Reino Unido. O sucesso, que surpreendeu até a editora de Paula, a Transworld, se deu no boca-a-boca e por um motivo simples: o romance, apesar de conter falhas, retém a atenção do leitor até o fim.
Um dos pontos questionáveis do livro é como Megan, que mora na pequena Witney, onde todos os rostos são familiares, segundo Rachel, que viveu ali até o divórcio, não foi vista por ninguém na noite em que desapareceu. E havia pessoas nas ruas: era verão, período de dias mais longos e agradáveis, e crianças brincavam no parquinho, como deixa escapar, em certo momento, a narradora principal do livro. Ao todo, o romance tem três narradoras, Rachel, Anna, aquela que tomou o seu lugar em sua casa, e a própria Megan. Se por um lado dividir a narrativa entre três personagens acrescenta perspectivas diversas à história e leva o leitor a participar mais da construção do livro, ao relacionar os relatos de uma e de outra, por outro lado reside aí o segundo ponto incômodo da obra. Embora tenham seus textos datados, nenhuma delas escreve um diário ou dá um depoimento que pudesse ter sido registrado – um testemunho para a polícia que se pudesse reproduzir nas páginas do livro, por exemplo. As vozes simplesmente brotam no romance, sem explicação, e é preciso algum esforço imaginativo, para não dizer benevolência, para comprar essa ideia. Além disso, elas não são tão distintas quanto deveriam: o registro de Anna não destoa muito dos de Megan e de Rachel, ainda que elas sejam mulheres diferentes.
A Garota no Trem cumpre, porém, não apenas o papel de entreter como também, missão maior de todo thriller, o de conduzir o leitor até a última página. A composição das personagens, com destaque para a alcoólatra Rachel, é boa. Há pouca descrição e bastante ação. É pelos atos que descobrimos quem é cada um, mesmo que em alguns momentos uma narradora fale mais do que deveria, e lemos traços psicológicos dos atores em cena. A psicologia, aliás, é um dos elementos fortes da história, capaz de conferir alguma densidade ao suspense.
E há passagens bem redigidas, em especial nas primeiras páginas – nada semelhante ao horror que é o texto de uma E. L. James. “É um alívio estar de novo no tem das 8h04. Não que eu esteja ansiosa para chegar logo a Londres e começar a semana – na verdade eu não faço a menor questão de estar em Londres. Só gosto de me recostar no veludo surrado e macio do banco, sentir o calor do sol entrando pela janela, o vagão me embalando, o ritmo reconfortante das rodas sobre os trilhos. Prefiro estar aqui, olhando para as casas à margem da linha do trem, do que em qualquer outro lugar”, diz uma melancólica Rachel no primeiro capítulo.
Não à toa, a crítica internacional vem comparando a estreia literária de Paula Hawkins a outro thriller, o também envolvente Garota Exemplar (Intrínseca), da americana Gillian Flynn. Há muitos pontos de contato entre eles, sem dúvida: da profissão original das autoras, ambas jornalistas, à construção de um enredo atraente em torno de uma personagem que desaparece, sem falar na palavra em comum no título. E no cinema, que já despontou no horizonte de A Garota no Trem. Fenômeno comercial no exterior, o livro de Paula Hawkins tem tudo para repetir o seu bom desempenho em vendas no Brasil. Em apenas cinco dias – ele chegou às livrarias na segunda-feira –, garantiu a vigésima colocação entre os mais vendidos do país. Tem alguns defeitinhos, é verdade. Mas quem liga para isso quando se trata de um thriller? O importante, aqui, é se deixar levar, como Rachel no trem. Ou nos goles de seus bons drinque.