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Livro que expõe vida de refugiados é soco no estômago com toque de poesia

‘No Friend But the Mountains’ foi escrito por iraniano mantido há seis anos numa ilha isolada e ganhou o maior prêmio literário da Austrália

Por Juliana Varella Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 27 fev 2019, 08h33 - Publicado em 26 fev 2019, 18h36
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  • Quando o vencedor do prêmio literário Victorian Premier’s foi anunciado em Melbourne, Austrália, no último dia 31 de janeiro, quem subiu ao palco não foi seu autor, Behrouz Boochani, mas sim seu tradutor, Omid Tofighian. Os dois nasceram no Irã e abandonaram o país devido a perseguições políticas ou religiosas – um na infância, outro já adulto – mas apenas um pôde segurar o troféu naquele dia.

    Boochani, jornalista, fugiu de sua terra-natal depois que a redação em que trabalhava (a da revista Werya, sobre cultura curda) foi invadida por agentes do Estado – a minoria curda é considerada uma ameaça por suas lutas separatistas. Sem levar consigo nada além de uma mochila vazia (que encheu com jornais velhos para não levantar suspeitas) e um livro de poesia, ele pegou um voo para a Indonésia e, de lá, se uniu a outros fugitivos numa embarcação clandestina rumo à Austrália.

    Primeira Pessoa: “Saí de uma ditadura para cair em outra”

    Encaminhado à marinha australiana, Boochani foi levado ao Centro de Processamento de Refugiados de Manus, localizado na ilha homônima na Papua Nova Guiné, residência temporária para onde são mandadas as pessoas que tentam entrar no país pelo mar. Esses lugares, como o jornalista descreve em vívidos detalhes no livro, são verdadeiras prisões: cercadas e vigiadas, com regras incompreensíveis e inegociáveis. Lá, frequentemente falta comida, eletricidade, as condições sanitárias são de embrulhar o estômago e atividades inofensivas como jogos de tabuleiro são proibidas sem qualquer explicação. Ao chegar, seus moradores têm seus bens confiscados (documentos e roupas inclusos), sua dignidade ferida e passam a ser tratados como perigosos criminosos.

    No Friend But the Mountains é uma passagem só de ida para dentro desse inferno – é impossível esquecer a realidade que se descobre ali. Apesar de muito fluida e cheia de pequenas belezas, a leitura do livro dói nas entranhas, principalmente porque expõe a nós mesmos nosso próprio preconceito. Não aquele óbvio, de quem julga refugiados como pessoas buscando ocupar um espaço que não lhes pertence, ou de quem tem pena das histórias que vê na TV. Mas um preconceito mais sutil e silencioso: o de quem não vê. Não realmente.

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    Ler a obra de Boochani nos obriga a enxergar, talvez pela primeira vez, cada uma dessas pessoas que fugiram de seus países de forma desesperada, arriscando suas vidas e às vezes também a de seus filhos pequenos em direção a um lugar onde sequer se fala sua língua. Habilidoso, o autor nos faz ver cada um desses exilados como um indivíduo particular, tão especial e banal quanto eu ou você. Alguém que, antes de ganhar a etiqueta de “refugiado”, era um engenheiro, um contador de histórias, dançarino ou piadista e, como qualquer um, se incomodava com barulhos, lugares lotados, sujeira e falta de educação. Ele nos faz entender, enfim, que ninguém – ninguém mesmo – abandonaria sua identidade, roupas, hábitos e família e encararia uma fila diária rumo a uma refeição rala e insossa por qualquer motivo que não fosse, no mínimo, uma questão de vida ou morte.

    Por um bom tempo, o casal do Sri Lanka apenas fica em pé, com seu bebê, procurando por um lugar no fundo do barco enquanto outros os encaram impiedosamente. Lá no fundo, posso ver que é um sufoco encontrar um lugar decente para sentar. Todos os espaços estão molhados e desconfortáveis e não é claro qual deveria ser a utilidade de todo o rebuliço e gritaria.

    Em meio a essa confusão, enquanto as mulheres e crianças tentam se acomodar em suas duras e desagradáveis posições, o barco parte, como uma égua pesadamente grávida trotando cuidadosamente através de uma pradaria negra de água.

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    Estamos a caminho da Austrália.

    No Friend But The Mountains - Behrouz Boochani

    Há um engenheiro treinado, um homem baixo pouco além da meia idade com uma cabeça redonda e careca. Ele é possivelmente o homem mais respeitável na prisão e o chamamos de Primeiro Ministro. (..)
    O Primeiro Ministro se vê num ambiente em que ele agora precisa esperar por horas numa fila para conseguir comida. Ou precisa encarar grandes dificuldades por uma simples visita ao banheiro. Certamente é difícil para toda a equipe e gerência compreender essa visão de uma figura respeitada, parada na fila do banheiro vestindo suas roupas largas de prisioneiro. É difícil reconciliar essa cena com a de alguém que, um dia, inspirou respeito de seus empregados.

    No Friend But The Mountains - Behrouz Boochani

     

     

    Arte que brota entre as grades

    A pergunta que inevitavelmente vem à cabeça é como esse livro pode ter sido escrito de dentro de uma “prisão”, como o autor tão assertivamente denomina seu novo lar. A resposta vem na forma de um aplicativo de mensagens e de algumas pessoas muito empenhadas em ajudar. Pode parecer estranho, mas esses refugiados, mesmo destituídos da liberdade de ir e vir, têm o direito garantido por lei (desde 2016, por determinação do governo da Papua Nova Guiné) de possuir celulares. Antes disso, eles contrabandeavam os aparelhos.

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    Foi com um celular que Boochani começou a se comunicar primeiro com o jornal britânico The Guardian, do qual se tornou correspondente regular, e depois com o professor de filosofia da Universidade Americana do Cairo e pesquisador da Universidade de Sydney Omid Tofighian, que conheceu seu trabalho por meio do jornal. “Cada capítulo era uma longa mensagem, sem divisão de parágrafos”, descreve Tofighian. Ele trabalhou junto com uma tradutora australiana chamada Moones Mansoubi para tentar expressar em língua inglesa imagens e sons que só o idioma persa (falado no Irã) é capaz de desenhar. “A língua persa tem um ritmo próprio e uma particularidade que faz com que cada longo período seja formado por várias orações interconectadas. Traduzir isso tal como é para o inglês reduz seu potencial poético, então tomei a decisão de dividir todos esses períodos em frases menores, o que acabou dando uma aparência de poesia a alguns trechos”, explica o professor, com uma ponta de orgulho.

    Tofighian também quer deixar claro o quanto o estilo do escritor iraniano lhe é caro: “Behrouz mistura várias técnicas e gêneros, incluindo elementos de jornalismo, documento histórico, reflexão filosófica, folclore e mito, tudo numa obra só”, conta. Com o tempo, ele acabou apelidando esse “anti-gênero” de “surrealismo horrível”, descrevendo-o como um misto de surrealismo e horror realista, mas outra classificação adequada seria “romance de cárcere” – aquela em que se encaixam obras como Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, Conversas que Tive Comigo, de Nelson Mandela, De Profundis, de Oscar Wilde ou Minha Luta, de Adolf Hitler, todas escritas de dentro de prisões.

    Boochani continua detido em Manus – não mais no Centro de Processamento, que foi desativado no final de 2017, mas na capital Lorengau, onde é permitido circular pela cidade apesar do alto índice de violência e da quase inexistência de atendimento médico ou psicológico para os cerca de 600 refugiados. Seu livro ainda não foi lançado em português, mas pode ser encontrado em cópias digitais em inglês. Segundo o autor, há planos de publicá-lo por aqui, especialmente após a visibilidade ganhada com o concurso. A quem quiser se arriscar no idioma, fica o conselho: leia aos poucos, e prepare-se para desmoronar.

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