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Knausgård e o cotidiano de um autor aos seus 40 e poucos

Escritor é adepto de um estilo ultrarrealista de literatura e faz observações atentas dos pequenos sucessos e hesitações da vida adulta

Por Diego Braga Norte Atualizado em 31 jul 2020, 04h02 - Publicado em 15 abr 2014, 14h47
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    O escritor norueguês Karl Ove Knausgård

    O que leva uma pessoa de 41 anos a escrever uma autobiografia? A pergunta torna-se ainda mais pertinente quando sabemos que a vida do autobiografado é absolutamente trivial, sem ter participado de uma guerra, sem ter sobrevivido a um desastre e sem sequer ter inventado algum app ou serviço on-line milionário. A resposta está nas mais de 3.600 páginas da autobiografia em seis volumes do norueguês Karl Ove Knausgård. O livro Um Outro Amor – Minha Luta 2 (Cia. das Letras, 592 páginas, 59,50 reais a cópia física ou 39,50 o e-book) acabou de ser lançado no Brasil e é, como o nome indica, o segundo volume da empreitada monumental de Knausgård.

    A obra vem sendo comparada ao magistral Em Busca do Tempo Perdido, do Marcel Proust, também uma autobiografia romanceada – mas esta com sete volumes. Depois de lançar dois livros de sucesso na Noruega, Ute av Verden (Fora deste Mundo, em tradução livre, de 1998) e En Tid for Alt (Um Tempo para Tudo, em tradução livre, de 2004), Knausgård enfrentou um bloqueio criativo. Para superá-lo, ele juntou fragmentos de passagens de sua vida, divagações e anotações de seu diário e terminou produzindo um calhamaço de 1.200 páginas. Em entrevista à revista Economist, o autor confessou que teve pudores em apresentar o material aos seus editores, pois o considerava muito pessoal. Para a surpresa de Knausgård, os editores não apenas adoraram o material bruto como ainda sugeriram uma ampliação. O resultado final ficou três vezes maior do que a primeira versão e a proposta original era publicar a obra em uma extensa coleção de doze livros. Sem cortar uma vírgula, mas juntando dois volumes em apenas um, a autobiografia Minha Luta começou a ser lançada em seis tomos em 2009.

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    CapaSe no primeiro livro, A Morte do Pai – Minha Luta 1 (Cia. das Letras, 512 páginas, 52,50 reais a cópia física ou 32,50 o e-book), o autor descreveu parte de sua adolescência e início da vida adulta no interior da Noruega, culminando na morte de seu pai; no segundo tomo, Knausgård descreve sua mudança para a Suécia e como ele encontrou e casou-se com sua segunda mulher – o ‘outro amor’ do título. Com um fluxo narrativo poderosíssimo, o autor mistura, sem o menor pudor, memórias, com ficção e ensaio em uma mescla que não respeita a ordem cronológica dos acontecimentos. O resultado é surpreendente e maravilhoso, com uma sinceridade e coesão poucas vezes encontradas na literatura. Narrando sempre em primeira pessoa e usando nomes reais, Knausgård teve alguns problemas após a publicação da obra. Ex-professores, vizinhos e até um tio seu não gostaram muito de ver suas vidas expostas em um livro. Knausgård é vítima de processos e já recebeu muitos e-mails e cartas com ameaças e xingamentos. Por outro lado, seus escritos tornaram-se uma coqueluche na Noruega. O frenesi foi tamanho que algumas empresas instituíram “dias livres de Knausgård”, para coibir a leitura dos livros durante o expediente, pois a devoção dos leitores pelas obras estava atrapalhando a produtividade.

    Com os dois pés no chão, Knausgård é adepto de um estilo ultrarrealista de  literatura e faz observações atentas dos pequenos sucessos e hesitações da vida adulta. Nesse ponto, em descrever a vida como ela exatamente é, sem floreios ou metáforas, o autor se aproxima do chileno Roberto Bolaño. De certo modo, a obra dos dois é quase uma resposta natural para um mundo contagiado por tons de cinza, redes sociais, Hobbits, gamificação, seriados enlatados e heróis infantis, presenças constantes no cinema atual e lista de best-sellers. Bolaño e Knausgård são adultos que escrevem para adultos. Nos livros do norueguês, a descrição de um jantar entre amigos pode durar trinta páginas e uma festa de ano novo, mais de quarenta. Mas serão talvez as melhores descrições de situações como essas já escritas.

    O autor parte das angústias humanas cotidianas e as explora a fundo, analisando como momentos de pura timidez ou impetuosidade podem alterar os rumos de nossas vidas – ou simplesmente não servem para nada, são apenas momentos passageiros. Apesar da história se passar em dois países europeus que a maioria tem pouca ou nenhuma familiaridade, ao retratar a alma humana de maneira tão precisa, Knausgård consegue se fazer universal. E mesmo sendo uma autobiografia, o autor não é um protagonista solitário em sua obra e ele divide o palco com o tema central do livro: a vida humana. Ao colocar o dia após dia em uma escala nada usual – ora demorando dezenas de páginas para narrar uma viagem de carro banal, ora adiantando e suprimindo vários anos em sua biografia em apenas um parágrafo –, Knausgård nos mostra seu processo de amadurecimento, por vezes penoso, como pessoa e como escritor.

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    Com passagens metalinguísticas, ele descreve como escreveu seus dois primeiros livros e como foi o início da redação da saga Minha Luta. O resultado é que em alguns trechos o livro conta como esse mesmo livro foi escrito. O jogo de espelhos e auto-referencial aqui não é um truque fácil de um tipo de literatura voltada para si mesma, mas um recurso de coesão para dar força ao realismo que a obra se dispõe a narrar. A relação do autor com seus poucos amigos, sua mulher e seus três filhos é descrita com tantos pormenores que tais se tornam como pessoas conhecidas do leitor. Se ao usar nomes e situações reais o escritor expôs muita gente, a maior exposição é da sua própria vida – a sinceridade de Knausgård atinge níveis absurdos, que perturba e angustia, mas principalmente, cativa e comove.

    PS: O título da obra, Minha Luta, segundo o próprio autor, nada tem a ver com o livro homônimo de Adolf Hitler. Em uma entrevista, Knausgård afirma que o título surgiu em uma conversa com um amigo e significa a sua batalha diária como homem e escritor. Ambos perceberam que o livro poderia ter seu título questionado, mas Knausgård decidiu mantê-lo, pois, segundo ele mesmo, não tinha outro mais adequado.

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