A mesa de encerramento da 16ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) trouxe a escritora homenageada Hilda Hilst pelo olhar de outros artistas com quem fez “parcerias”, digamos. E bastante frutíferas: o cantor Zeca Baleiro lançou em 2006 dez poemas da autora musicados no disco Ode Descontínua para Flauta e Oboé — ele encerrou a mesa tocando uma de suas músicas. A atriz Iara Jamra, que deu vida no teatro à menina vítima de pedofilia do Caderno Rosa de Lori Lamby, falou sobre Hilda e representou um pedaço do texto, em que a polêmica personagem conta a sua história com um olhar infantil, lúdico e inocente.
Iara lembrou sua visita à Casa do Sol, a chácara onde Hilda morava e trabalhava, e que hoje abriga o Instituto Hilda Hilst. “Sempre fiz meninas e personagens inocentes, talvez por causa da minha voz, e quis interpretá-la porque é um pouco mais picante”, contou, mas seu projeto com desenhos infantis não foi aceito de pronto pela autora: “Levei a adaptação e ela não entendeu. Disse: ‘Quando você tirar isso tudo, volta aqui”.
A primeira montagem, com direção de Bete Coelho, chegou aos palcos em 1999. Poderia ser reencenada nos dias de hoje? “A gente está vivendo um momento em que você fala algo e é errado, é politicamente incorreto, está ofendendo alguém, e não é isso. É literatura, é arte, e não é pedofilia (…) Talvez o público hoje esteja menos arejado, mais tenso… Tem que entender o lado da artista, é arte, é brincadeirinha.”
Heavy metal da Hilda
“A Hilda era rock’n roll, né”, descreveu Zeca Baleiro: era contestadora, irreverente. O cantor contou que recebeu um telefonema de uma Hilda que se recuperava de uma doença, com voz rouca, e que mudou a visão que ele tinha sobre ela. “Hilda Hilst estava em um lugar inalcançável de ídolo para mim, como Bob Dylan. Paul McCartney.” Isso acabaria em breve. Disse Hilda: “Livro não dá dinheiro. Achei Heavy Metal do Senhor (sucesso de Baleiro) do caralho. Música dá dinheiro né?”, contou o cantor, que depois a corrigiu: “Não é bem assim”.
A parceria deu certo, mas não a tempo de Hilda ver: o disco foi lançado em 2006 e ela faleceu em 2004. Zeca varre a tristeza do olhar e segue contando causos, abundantes na vida de Hilda. Como ao lembrar a primeira parceria da autora, com Adoniran Barbosa, a música Quando Te Achei, gravada na voz de Elza Laranjeira nos anos 1960. “Devia estar bebendo com Adoniran no Bixiga, né.”
https://www.youtube.com/watch?v=NSydxR-Shz8
Ou a vez que estava ao lado dela quando recebeu um telefonema de um amigo que trabalhava na Secretaria da Cultura de São Paulo, perguntando se ela estava bem e se precisava de algo. A resposta: “Pode vir me comer porque eu estou num jejum de 5 meses.” “Se Hilda estivesse aqui hoje, não estaria falando de sua literatura, mas contando suas histórias”, conclui o cantor.
‘Sou bruxa’
Também participou da mesa o fotógrafo Eder Chiodetto, que fez fotografias de Hilda em idade avançada, quando ela não queria mais ser clicada. Ele foi visitá-la e não acatou sua recomendação, levou a câmera. “Depois de alguns vinhos do porto, ela aceitou”, contou.
Mas não, ele não saiu impune. Ao revelar as fotos, percebeu que os negativos tinham se estragado. Na visita seguinte, Hilda cobrou as fotos, que ele obviamente não tinha, e disse: “Tá vendo? Sou bruxa.”
O fotógrafo também relembra uma memorabilia famosa da Casa do Sol: o relógio de parede com os dizeres “É mais tarde do que supões”, o terror dos apressadinhos. Nota que, desde que era viva, ele já estava quebrado. “Hilda zomba do tempo”, finalizou.
O evento
A 16ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) acontece de 25 a 30 de julho em Paraty, litoral sul do Rio de Janeiro. Com curadoria de Joselia Aguiar, o evento conta neste ano com a participação de André Aciman, autor do livro Me Chame pelo Seu Nome (adaptado ao filme homônimo vencedor do Oscar 2018), o laureado pelo Prêmio Pulitzer Colson Whitehead e a ganhadora do Prêmio Goncourt Leïla Slimani. A escritora homenageada da edição é a polêmica paulista Hilda Hilst.