‘Em Israel, refugiados são invisíveis’, diz escritora Ayelet Gundar-Goshen
Em entrevista a VEJA, convidada da Flip 2019 e autora de 'Uma Noite, Markovitch' fala sobre o livro, a política de Benjamin Netanyahu e Jorge Amado
São os primeiros anos da II Guerra Mundial e a Europa está ocupada por tropas da Alemanha nazista. Jovens mulheres judias não podem deixar o continente desacompanhadas e, para fugir dos exércitos de Adolf Hitler, fecham acordos de casamentos arranjados com homens, também judeus, que nunca viram antes. Eles deixam a Palestina rumo à Europa, casam-se com as moças, voltam ao território que será a pátria judaica e se divorciam – cada um segue seu caminho, longe dos perigos do nazismo. Esta é a história, com fundo real, que a escritora israelense Ayelet Gundar-Goshen, que virá para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2019, conta em seu livro de estreia, Uma Noite, Markovitch, lançado no Brasil pela Todavia. A autora, inspirada em um relato que ouviu, porém, acrescenta um toque dramático: um dos rapazes, protagonista de seu romance, se apaixona pela mulher com quem se casou e se recusa a assinar o divórcio.
Em entrevista a VEJA, Ayelet fala de sua inspiração para criar seu primeiro romance – ela tem outros dois publicados no exterior, Waking Lions e The Liar, que ainda não chegaram no Brasil – e a política de Israel que dificulta a entrada e a concessão de asilo a refugiados do Sudão e da Eritreia. “Parte da nossa tradição judaica tem a ver com saber como é ser um refugiado”, diz. “Precisamos ser gentis com os refugiados que estão surgindo aqui. Isso não significa que eu ache que temos que aceitar todo mundo, mas se uma pessoa está fugindo da guerra, acredito que aqui deveria ser um lugar seguro para ela. Vejo problemas com o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e seu posicionamento em relação aos refugiados.”
A Flip 2019 acontece entre 10 e 14 de julho, na cidade fluminense e tem como homenageado o jornalista Euclides da Cunha, autor de Os Sertões.
Confira a entrevista:
Quanto da história que você conta em Uma Noite, Markovitch é real? Realmente um grupo de homens deixou Israel, que estava sob ocupação britânica, rumo à Europa, ocupada por nazistas, para casar com essas mulheres judias e, dessa maneira, tirá-las de lá e salvá-las. Eles deveriam chegar a Israel e imediatamente pedir o divórcio. Mas, em ao menos um dos casos que ouvi, no trajeto o homem se apaixonou tão profundamente pela mulher que se recusou a divorciá-la. Ele foi para a Europa fazer essa coisa muito nobre, mas logo em seguida agiu da maneira mais egoísta possível, obrigando a mulher a continuar casada mesmo que não quisesse. Quando ouvi essa história, fiquei fascinada por causa do choque entre a nobreza e o egoísmo, entre uma operação nacional e o desejo humano.
O livro é centrado em dois personagens masculinos, mas as mulheres retratadas têm, de alguma maneira, mais força do que os protagonistas. Qual era a sua intenção com a construção dos personagens dessa maneira? Como mulher, sinto que não vejo muitos livros em que as mulheres são fortes e têm desejos e necessidades, e também o poder para brigar por seus desejos e necessidades. Em Uma Noite, Markovitch, há uma personagem que me lembra muito de minha avó, uma mulher forte, corajosa e sensual. Quando escrevi o romance, as pessoas me perguntavam por que eu a tinha descrito de maneira tão sensual, sexy, e eu pensei: ninguém me perguntaria isso se o personagem fosse um homem. Como é uma mulher sensual, que tem desejos e paixões, ela é automaticamente considerada meio monstruosa. Queria que as mulheres celebrassem seu próprio corpo, assim como fazem os homens.
O romance tem toques de realismo mágico. Foi influenciada por autores como Gabriel García Márquez e Jorge Luis Borges? Amo realismo mágico, não só García Márquez, mas também Jorge Amado, o autor brasileiro. Meu livro preferido dele é Dona Flor e Seus Dois Maridos – é sexy e inteligente. Eu amo a ideia de que não há uma divisão, uma fronteira tão clara entre realidade e fantasia, porque acho que é assim na vida real.
Seu primeiro livro é um romance histórico, o segundo um thriller e o terceiro tem tons de drama policial. É uma intenção consciente passear por diferentes gêneros? Escrevo a cada vez uma história pela qual tenho paixão, de uma maneira que parece apropriada. Meus romances são de gêneros muito diferentes. O primeiro é muito leve e cômico, o segundo é muito sombrio, como um thriller, e o terceiro tem um humor negro. Gosto de me sentir livre, como uma menina em um playground que pode escolher qualquer brinquedo. Gosto de escolher um gênero e me divertir com ele.
Seu segundo romance, Waking Lions, conta a história de um médico judeu que atropela um refugiado e foge. Escrever o livro fez com que você mudasse sua visão sobre refugiados? Como vê a atual situação de Israel em relação a esse assunto? Em Israel, os refugiados são pessoas invisíveis, que limpam a nossa mesa, nós nunca nem olhamos para eles. Quando você escreve um romance inteiro sobre um refugiado, precisa olhar de verdade para ele, se importar com ele. Então escrever Waking Lions de alguma maneira mudou, sim, a forma como eu olho para refugiados. Israel não dá asilo para as pessoas que fogem do Sudão e vêm parar nos nossos portões. Parte da nossa tradição judaica tem a ver com saber como é ser um refugiado. Precisamos ser gentis com os refugiados que estão surgindo aqui. Isso não significa que eu ache que temos que aceitar todo mundo, mas se uma pessoa está fugindo da guerra, acredito que aqui deveria ser um lugar seguro para ela. Vejo problemas com o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e seu posicionamento em relação aos refugiados.
Em um artigo para o jornal britânico The Guardian, você fala sobre como Netanyahu conseguiu criar uma narrativa que retrata o povo israelense como vítima e o povo palestino e muçulmano como vilão. Ele acabou de ser reeleito. Quanto acha que essa narrativa ainda vai funcionar? A narrativa que Netanyahu criou é muito convincente e poderosa. Vai continuar por um bom tempo porque as pessoas gostam de uma boa história, e essa é uma história muito boa, simples, sobre bem e mal. É como um conto de fadas, é muito popular.
Estou muito preocupada com a maneira como o nazismo tem sido usado por políticos do mundo todo como uma maneira de tentar destruir o outro lado
O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, esteve recentemente em Israel e se encontrou com Netanyahu. Algo que ele tem repetido ao longo dos últimos meses é que o nazismo era um movimento de esquerda. Como vê essa declaração? Dizer isso é claramente não entender o nazismo. Estou muito preocupada com a maneira como o nazismo tem sido usado por políticos do mundo todo como uma maneira de tentar destruir o outro lado. Em vez de olhar para os argumentos do lado oposto e responder, eles os chamam de nazistas e terminam a discussão. Isso é muito, muito problemático.
Como vê o posicionamento de artistas como Roger Waters, que boicotam e propõem que outros boicotem Israel? Roger Waters está fazendo o que ele acha correto para acabar com a ocupação israelense na Palestina e estabelecer a paz entre os dois lados. Mas não concordo com essa visão, porque acredito que para fazer com que os israelenses terminem a ocupação, precisa convencê-los, não forçá-los a fazer isso. É preciso mostrar que os palestinos não são uma ameaça. Boicotar não nos ajuda a entender que os palestinos não são uma ameaça, só faz com que nós nos sintamos mais ameaçados.
Quais são suas expectativas para a visita ao Brasil? Será minha terceira visita ao Brasil. Meu marido é meio brasileiro, a família dele é de São Paulo. Eu amo o país. Será minha segunda vez em Paraty. Espero comer moqueca, tomar batida de coco e sentar na praia.