Ao fim da longa reportagem em que apresenta ao mundo aquela que seria a verdadeira Elena Ferrante, pseudônimo da autora ou autor que é o maior fenômeno literário da Itália das últimas décadas, o jornalista Claudio Gatti lembra que hoje se vive a era da super-exposição. Gatti tenta construir, em poucas linhas, uma claudicante justificativa para tirar do anonimato alguém que pedia para permanecer invisível. O desejo pela discrição o deixa espantado – “Em uma era em que fama e celebridade são desesperadamente buscadas, a pessoa por trás de Ferrante não queria ser conhecida”. Para ele, Ferrante é como um alien no histérico mundo das redes sociais, que tornaria “virtualmente inevitável” a descoberta da sua identidade. O italiano, como se vê, não teve pruridos para levantar o faturamento da Edizioni E/O, pequena editora romana que publica os livros de Elena Ferrante, e seguir os veios do dinheiro para saber onde vai parar a maior parte dele. “Deixo provas financeiras que falam por si mesmas”, diz, antes do ponto final da matéria, publicada ao mesmo tempo na Itália (Il Sole 24 Ore), na Alemanha (Frankfurter Allgemeine Zeitung), na França (Mediapart) e nos Estados Unidos (The New York Review of Books), em que exibe orgulhoso as informações que conseguiu. O orgulho de Gatti, no entanto, se refletiu na fúria de diversos escritores, editores e leitores ao longo da semana. A revelação pode ser um grande feito jornalístico – ainda que se discuta a ética do repórter –, mas é um golpe na literatura. A começar pelo fato de que, ao escavar a vida e as razões da “pessoa por trás de Elena Ferrante”, Gatti deu explicações, naturalmente redutivas, a um personagem.
Alerta: a partir daqui, o texto traz dados sobre aquela que seria a real identidade de quem assina livros que já venderam 4 milhões de exemplares pelo mundo, 47.000 deles no Brasil, numa rara conjunção de razoável qualidade e desempenho comercial. Elena Ferrante é um personagem. Não é a pessoa que descreve ser. E, aliás, talvez não seja nem uma, mas duas pessoas. A apuração de Claudio Gatti indica que a receita da Edizioni E/O saltou nos últimos anos, especialmente após a chegada dos livros da escritora aos países de língua inglesa, em 2013, quando Ferrante teve uma elogiosa resenha na prestigiada revista The New Yorker. No ano seguinte, a editora registrou um crescimento de 65% no faturamento, seguido de outro de 150% em 2015, quando passou de 3 para 7,6 milhões de euros. No mesmo período, Anita Raja, uma tradutora de literatura alemã que colabora com a E/O há décadas, passou a receber pagamentos cada vez mais vultosos da editora: o aumento foi de 50% em 2014 e de mais de 150% no ano seguinte.
Neste ano, o marido de Anita, o escritor Domenico Starnone, comprou um baita apartamento em Roma, de onze quartos e valor estimado entre 1,5 e 2 milhões de euros. A própria tradutora já havia adquirido um de sete quartos na mesma área nobre da capital italiana, em 2000, quando Elena Ferrante era então um pequeno fenômeno em seu país. Seu primeiro livro, L’Amore Molesto, lançado em 1992 e ainda não editado no Brasil, teve os direitos vendidos para o cinema, onde estreou em 1995 pelas mãos do diretor Mario Martone. O ótimo Dias de Abandono, sobre uma mulher que é deixada pelo marido nas primeiras linhas e vive um processo de dissolução psíquica ao longo de impressionantes sessenta páginas, entraria em cartaz dez anos depois, assinado por Roberto Faenza. Uma prova do virtuosismo de Ferrante, Dias de Abandono foi lançado há pouco pela Biblioteca Azul, selo da Globo Livros.
Além das evidências materiais, Claudio Gatti arrola provas literárias em torno de Anita Raja e Domenico Starnone – ambos, vale dizer, já eram candidatos ao posto de Elena Ferrante, e ele havia sido apontado como o dono do estilo mais próximo daquele que compõe os livros dela, em um teste feito com auxílio de um software por matemáticos e físicos de uma universidade romana, La Sapienza. “Um estilo que pode ser definido como seco, porque sem floreios, muito preso à trama, especialmente nos volumes da tetralogia napolitana, mas com alguns aforismos e alusões, como o nome Elena Greco, que pode querer dizer Helena Grega. Anita traduziu para o italiano livros de escritoras do leste da Alemanha, incluindo Christa Wolf, cuja obra teria ecos na de Ferrante – para ficar em um exemplo, um livro de Wolf tem uma personagem à cata de uma amiga que desapareceu, como Lenu procura por Lila na Série Napolitana.
Nada, nem mesmo Claudio Gatti, descarta que Domenico Starnone – cujo apelido de infância é Nino, como o Nino Sarratore que é o grande amor de Elena Greco (Lenu), a narradora da tetralogia iniciada por A Amiga Genial – faça parte do que venha a ser Elena Ferrante, pseudônimo tortuosamente decalcado de Elsa Morante, uma das influências que a autora, nas poucas entrevistas que concedeu, já reconheceu ter. Ao contrário de Anita, 63, que nasceu em Nápoles mas se mudou para Roma aos 3 anos de idade, Domenico, de 73, foi criado na cidade, exatamente na época em que é ambientada a famosa Série Napolitana, cujo terceiro livro, História de Quem Foge e de Quem Fica, sai pela Globo Livros em novembro e o último, História da Menina Perdida, é previsto para 2017. A Intrínseca, vale dizer, adquiriu os direitos dos outros títulos de Ferrante e lança, agora em outubro, A Filha Perdida e o infantil Uma Noite na Praia.
O próprio Starnone reconheceu em uma entrevista, anos atrás, ter discutido a obra de Wolf com a mulher, em casa, enquanto ela traduzia a alemã. A Alemanha não é um território nada desconhecido para Anita Raja: sua mãe, longe de ser uma pobre costureira do sul da Itália, foi uma judia polonesa que sobreviveu ao Holocausto, quando viu parte dos parentes ser dizimada.
Evidências apresentadas, fica difícil discordar de que se está, menos até pelo adiantado da hora do que pelo seu conteúdo inflamável, diante da maior notícia do ano no mundo editorial. Falta agora saber em que medida a devassa na vida da escritora vai representar uma devastação no seu trabalho. Os efeitos podem ir dos mais práticos e imediatos aos menos palpáveis. O livro Frantumaglia, por exemplo, um volume já lançado e ampliado na Itália com entrevistas e textos ditos autobiográficos de Elena Ferrante, tem chegada prevista para novembro nos Estados Unidos, mas agora pode soar como fraude para o leitor americano mais avesso a joguinhos. O público sempre esteve avisado de que Elena Ferrante era um pseudônimo. Mas havia quem agrupasse peças, pinçadas das entrevistas por e-mail que a autora deu, e acreditasse formar com elas um retrato. E agora, com as informações que Gatti reuniu, fica claro que boa parte das respostas a essas entrevistas, como quando diz que cresceu em Nápoles e tem origem humilde, eram pura ficção. Não que Elena mesma não tenha avisado de que fabularia – chegou a citar Ítalo Calvino, e sua advertência de que não daria aos outros a verdade exata que esperavam. Elena Ferrante, vale repetir, é uma personagem.
No campo da interpretação, críticos como o reputado James Wood, da New Yorker, podem ser obrigados a rever suas leituras de Elena Ferrante. Para Wood, a literatura da italiana era “violentamente pessoal”. Agora, que se sabe que a escritora não é autobiográfica, o adjetivo dificilmente se mantém. Se Domenico Starnone estiver envolvido, a ideia de que a obra de Ferrante tem tons feministas, como se falar das dificuldades da maternidade ou de mulheres que não querem ter filhos fosse um ato político e não realismo, também pode cair. Outras releituras, todas sob o novo filtro das explicações – Weber já dizia, explicar é reduzir –, estão por vir.
Elena Ferrante, o nome mais misterioso da literatura nas últimas décadas – mais que Thomas Pyntchon ou JD Salinger, que têm nos livros os seus verdadeiros nomes – talvez fosse interessante justamente por ser um mistério. Esclarecimentos podem ser ótimos no mundo acadêmico. Mas a literatura pede um pouco de sombra. Devassar a vida de um escritor – ou, vá lá, de um pseudônimo – e apontar o que é e o que não é igual ao que se lê nos livros parece literatura pobre. Daquele tipo em que cada personagem, em vez de ser apreendido pelos gestos e ações que realiza, é descrito em uma profusão de detalhes que não deixam espaço para a imaginação. E era justamente isso o que Elena Ferrante – ou seja ela quem for – tinha de sobra para oferecer.