A escritora russa de contos de terror Liudmila Petruchévskaia encantou a plateia da mesa que fechou a noite deste sábado na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Ela não fala uma palavra de português, pouquíssimo inglês, e os desencontros entre seu intérprete e a entrevistadora, a jornalista portuguesa Anabela Mota Ribeiro, fizeram risadas ressoarem no auditório.
Com sua vestimenta de época e grande chapéu (“isso é apenas para o palco”), Petruchévskaia começou pedindo que todos da mesa ficassem em pé (“em respeito à plateia”) para responder sobre o papel da escuta como escritora. Ela contou uma pequena história de um coração partido que ouvira no ponto de ônibus e disse que anotava tudo. “O que eu digo é: anotem. As pessoas vão achar ruim quando você anota, mas é por isso que eu me escondo. É assim que me tornei escritora.”
Foi difícil cortar o clima descontraído para ela dividir seu passado sofrido: a II Guerra Mundial eclodiu quando tinha 1 ano, e aos 3 anos de idade já havia perdido entes queridos. “Há um termo chamado inimigo do povo. E eu fui uma. Passamos fome. Mas o ser humano sabe inventar, é esperto. Por isso à noite eu fui na lata de lixo onde você podia achar espinha de peixe, restos da batata, restos do pão, e a gente sobreviveu.”
Contadora de histórias nata, cada conto levava a outro: adoecida pela fome, disse ela, sua avó ficou acamada e lhe contava as histórias de Gógol, que sabia de cor. Ela reproduzia as histórias em praça pública quando criança.
Perdido na tradução
Foi aí que a coisa começou a desandar. A jornalista portuguesa queria perguntar à escritora sobre um espaço comum em casas de sua época, uma cava subterrânea com um fogão, e o que aquilo representava para ela. Depois do vaivém de palavras entre entrevistadora e intérprete, Liudmila se levanta, resoluta, e sentencia: “O que é pátria? Isso é inverno para mim.” Todos riram, sem entender nada.
Anabela tentou mais algumas vezes, e por fim desistiu. Começou a perguntar em “brasileiro”, disfarçando seu sotaque português, para que o intérprete a entendesse, e simplificou: “O que você gosta de comer?”, ao que Liudmila respondeu: “Pão preto”. Era fatal: não havia mais resposta que desse e não soasse cômica.
Falando sério
“Vocês são uma plateia muito bem-humorada”, disse, começando a pontuar quando o assunto exigia mais decoro. Como quando ela foi questionada sobre a morte: “Eu só tenho medo da morte dos meus entes queridos. A gente pensa que vai continuar, mas quando menos se espera, sumimos. Não tenha medo da morte”, disse a autora de contos de terror.
Declarou ter medo de tudo quando pequena. Teve que viver em um sanatório de tuberculosos, onde outras crianças não gostavam dela porque era uma menina da rua. Sofria bullying, e a única arma que tinha era a poesia. “Sobrevivi por causa disso, da literatura”, concluiu. Questionada sobre a presença da morte em seus contos, soltou: “Há muita morte na vida.”
Uma palavra que todo mundo entende
Para muitas perguntas, a resposta da autora era enfática e simples. O que significava para ela estar entre as mais lidas do maior jornal do grande país
capitalista, os EUA? “Tanto faz.” Por que adora crianças? “Porque você pode pegá-los no colo!” O elemento animal é muito presente na sua narrativa? Um forte “DAAA” — sim, em russo. Por quê? “Não sei, mas amo os gatinhos, os bem pequenininhos.”
A plateia já era sua, mais ainda queria se fazer ser entendida — ao menos, na linguagem. Quando questionada se gostava de jogos: “Eu não jogo computador, eu jogo… eu esqueci. Lembrei: sudoku!”. Finalmente uma palavra que dispensou o intérprete.
O conto e o canto
Voltando ao papo sério, ela fala de sua escrita: “Isso não é para rir. Minhas histórias, eu vejo elas inteiras. Tenho que escrever muito rápido para não
perdê-las.” Ela explicou que acredita em inconsciente coletivo, onde toda nossa fala e nosso trabalho se concentraria. “Tiro as histórias desse lugar, ele me dita. Vão me perguntar se é um deus, mas acho que isso é alto demais para mim.”
Liudmila já tinha provado que era a musa desta edição da Flip, tal qual Valter Hugo Mãe em 2011, quando decidiu que era a hora de dar fim à entrevista e cantar.
“Quando eu era pequena, cantava nos pátios pedindo comida. Então é um hábito que ficou dentro de mim. Eu comecei a cantar com 69 anos de idade, então quem for novo ainda vai chegar lá.”
E iniciou seu repertório, que incluía Aux Champs Elysées e uma versão russa de Besame Mucho.
O evento
A 16ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) acontece de 25 a 30 de julho em Paraty, litoral sul do Rio de Janeiro. Com curadoria de Joselia Aguiar, o evento conta neste ano com a participação de André Aciman, autor do livro Me Chame pelo Seu Nome (adaptado ao filme homônimo vencedor do Oscar 2018), o laureado pelo Prêmio Pulitzer Colson Whitehead e a ganhadora do Prêmio Goncourt Leïla Slimani. A escritora homenageada da edição é a polêmica paulista Hilda Hilst.