O que determina quanto álcool você toma? A influência oculta da indústria
Debruçando-se sobre um caso exposto nos EUA, colunista examina os chamados determinantes comerciais da saúde, que repercutem em nossa visão e consumo
As pessoas tendem a achar que possuem uma liberdade de escolha maior do que têm na realidade. Muita gente acredita que, guiada pelos próprios desejos, tem absoluto controle sobre o que e quanto vai consumir – seja em relação à comida, seja em relação à bebida. No entanto, frequentemente essa percepção é falha. Nossas escolhas são sugestionadas por diversas forças, incluindo as estratégias das grandes indústrias.
Esse assunto tem tudo a ver com o álcool. No campo científico, chamamos essas influências de “determinantes comerciais da saúde”. Elas envolvem a formulação dos produtos, práticas de marketing e publicidade e até as políticas de preços para promover o que se vende.
Sim, os interesses econômicos podem moldar comportamentos, afetando as escolhas e a saúde em nível individual e populacional. Um exemplo que ilustra muito bem essa história é a da bebida alcoólica – em minha exposição, colocarei links para quem quiser ir mais a fundo.
A narrativa gira em torno do Instituto Nacional sobre o Abuso do Álcool e o Alcoolismo (NIAAA), a principal entidade de financiamento de pesquisas relacionadas a bebidas alcoólicas nos Estados Unidos. O NIAAA, um dos 27 que compõem os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) do governo americano, possui um orçamento substancial – quase 600 milhões de dólares em 2023 -, tornando-se um centro de pesquisa de importância global.
Seu financiamento sustenta uma variedade de iniciativas de pesquisa e programas de formação, com o objetivo de compreender e divulgar conhecimentos cruciais sobre os efeitos do álcool na saúde e no bem-estar geral. Uma equipe de cientistas e administradores dentro do NIAAA indica as áreas de estudo prioritárias, cujos resultados influenciam fortemente as políticas públicas relacionadas a bebidas alcoólicas nos Estados Unidos e em todo o mundo.
Em 2013, experts da entidade propuseram um projeto ambicioso, envolvendo vários institutos, para investigar o impacto do consumo de quantidades moderadas de álcool na saúde do coração. Na época, os resultados dos estudos nessa área, em sua maioria observacionais, eram variados – embora atualmente haja um consenso global de que não há um limite seguro para o consumo.
Os especialistas do NIAAA planejavam realizar um ensaio clínico em larga escala, visto como a abordagem científica padrão-ouro para determinar causas e consequências, aplicando uma ou mais intervenções aos participantes e avaliando seus efeitos na saúde deles. Com o objetivo de angariar fundos, a liderança do instituto, com apoio e conhecimento de seu diretor, iniciou uma série de encontros com representantes da indústria do álcool, tanto grupos de lobby como as maiores empresas globais produtoras de bebidas.
Essa proximidade com a indústria do álcool é um tanto inusitada, considerando que a missão do NIAAA é pesquisar os problemas relacionados ao consumo, enquanto o propósito da indústria é vender bebidas alcoólicas e maximizar lucros.
Em 2014, um pesquisador da Universidade Harvard e outro de Yale se encontraram com representantes da indústria de álcool a convite do NIAAA para apresentar uma proposta metodológica que agradasse e convencesse a indústria a patrocinar o estudo. O representante de Harvard, autor de estudos anteriores sobre os supostos benefícios de doses moderadas do álcool ao coração, tinha uma visão mais alinhada com a indústria.
Um ano depois desse encontro, não por coincidência, o sujeito foi escolhido como o destinatário do financiamento e assumiu o papel de investigador principal no Estudo sobre Álcool Moderado e Saúde Cardiovascular, recebendo um total de 100 milhões de dólares, dos quais 80% provenientes de doações da indústria de álcool.
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É fácil entender o porquê da indústria ter gasto milhões com esse investimento. Esse estudo representaria um gol de marketing sensacional para o setor, se concluísse que o consumo moderado de álcool era benéfico para a saúde cardiovascular.
Só que os bastidores dessa trama vazaram para a imprensa em tom de denúncia – por isso estou compartilhando hoje com vocês. O NIH foi compelido a iniciar uma investigação interna em 2018, formando um comitê consultivo que recomendou a interrupção do projeto, decisão que foi obedecida.
Concluiu-se que o processo envolvendo o ensaio clínico tinha sido corrupto, com interações anteriores e compadrio entre a liderança do NIAAA (supostamente defensora do bem comum) e a indústria do álcool, dificultando concorrência aberta para financiamento de pesquisa, pré-seleção de investigador principal e lançando mão de metodologia inadequada. Surpreendentemente, instituições de renome, como Harvard, Yale, Johns Hopkins, além de faculdades na Holanda, Nigéria, Argentina, Dinamarca e Espanha, estiveram envolvidas nisso.
Cinco anos após o escândalo, o diretor da NIAAA e os pesquisadores implicados no ensaio clínico ainda permanecem em seus cargos. Apesar do ocorrido, em 2023 o pesquisador de Harvard que protagonizou o episódio foi convidado a integrar um comitê do Food and Nutrition Board, encarregado de revisar as evidências sobre o consumo de álcool e saúde para atualizar as diretrizes americanas.
Esse painel está examinando os impactos do consumo de álcool em diversas áreas da saúde, incluindo obesidade, câncer, doenças cardíacas e mortalidade geral. Deverá fornecer recomendações vitais sobre o nível de consumo de álcool considerado seguro para os americanos, seguindo o exemplo do Canadá em 2022, que reduziu o limite de baixo risco para duas doses por semana. Graças à denúncia vazada para a imprensa, o pesquisador e um colega de Harvard com credenciais parecidas foram desconvidados.
Veja bem: se aquele estudo do NIAAA tivesse seguido em frente, com seus vieses e planejamento impróprios, é provável que benefícios duvidosos do álcool para a saúde fossem destacados, enquanto efeitos adversos, subestimados. Essas conclusões teriam uma repercussão global significativa, alimentando a teoria de que a bebida alcoólica não afetaria a saúde cardíaca.
Tanto indivíduos quanto governos poderiam não perceber que os caminhos que levaram às conclusões foram atravessados por significativos conflitos de interesse, acabando por desencadear resultados cientificamente questionáveis. O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao Guia Alimentar Americano e suas recomendações, potencialmente influenciadas por pesquisadores associados a interesses comerciais.
É importante ressaltar que o caso narrado é apenas um desacerto que veio a público – muitas situações inaceitáveis como essa permanecem ignoradas.
Conclusão: fatores comerciais podem ter um impacto considerável nas escolhas e no impacto do álcool à saúde. É preciso ter cautela e rigor ao estabelecer parcerias entre entidades públicas e indústrias com interesses comerciais que promovem produtos associados a riscos à saúde. Isso vale para o álcool, mas também para o tabaco e os alimentos ultraprocessados.
* Ilana Pinsky é psicóloga clínica e pesquisadora ligada à Fiocruz. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), foi consultora da OMS e professora da Unifesp e da Universidade de Columbia