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Matheus Leitão

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Blog de notícias exclusivas e opinião nas áreas de política, direitos humanos e meio ambiente. Jornalista desde 2000, Matheus Leitão é vencedor de prêmios como Esso e Vladimir Herzog
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Uma história brasileira: a dos jovens negros da favela

A Curva do S é um ponto geográfico na Rocinha. De lá, o jornalista Edu Carvalho conta histórias de ficção - uma delas, inédita, publicada agora pela coluna

Por Edu Carvalho
Atualizado em 8 set 2020, 15h54 - Publicado em 7 set 2020, 12h28
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  • Lançado nos últimos dias, o livro Na curva do S, Histórias da Rocinha, do jornalista Edu Carvalho, revela uma voz direta da maior favela da América Latina. É sobre o cotidiano dos jovens, e de suas famílias, que vivem na região com cerca de cem mil pessoas. A Rocinha é uma comunidade que o Estado pouco conhece. Quando entra em contato – muitas vezes -, chega impondo armas, atirando. Como é crescer com medo e vencer a estatística que mostra que jovens negros do sexo masculino são o principal alvo das mortes?

    Publicada pela Editora Todavia, a obra de ficção de Edu Carvalho leva, ao longo de doze contos, o leitor a caminhar pelas ruas e vielas da Rocinha, agora sob a ameaça da pandemia. Os personagens são  motoristas de Uber, vendedores, pastores, mães preocupadas e jovens tentando se divertir, mas com a rotina transformada pela Covid-19, obrigados a improvisar mais e inventar mais para sobreviver à tempestade. Segundo o autor, são histórias e também assuntos que tocam particularmente a vida brasileira em geral, “neste que é um dos tambores do Brasil”. Leia abaixo um trecho inédito que mostra como é o dia a dia de uma mãe tentando proteger seu filho:

    – “Jefferson?”

    – Qual foi?

    – Ô meu filho, como você tá? Você comeu hoje? Que cara é essa de abatido? Você já é branco, tá parecendo uma vela.

    – Tô legal mãe, tá tudo certo. Mandaram trazer uma quentinha ali do Bar da Loira faz uns dez minuto. Até lembrei da senhora, tinha opção de escolher costela com agrião.

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    – Ô meu filho, que alegria saber que você lembrou de mim. Se você quiser eu faço uma costela em casa pra você.

    – Foi uma rápida lembrança, já passou já. E também não dá pra ficar comendo costela o tempo todo….

    – Jefferson, meu coração chega a disparar toda vez que passo por aqui e vejo você tão em perigo, meu filho. Por isso há tempos tô querendo conversar com você. Me escuta: se os caras começam a subir e te olham lá da Estrada da Gávea, é um minuto pra acertar. Não me guento com você aqui, sentado nessa cadeira, com esse trambolho no pescoço.

    – Já falou, já? Eu sei me cuidar. E ninguém vai me atirar não.

    Os cara tem pago e deixado tudo no esquema. Não vê que a situação deu uma trégua? Tem uma hora ou outra que os cara distoam, mas logo volta ao normal. E mês que vem eles tão dizendo que posso assumir uma…

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    – Como é a história, Jefferson? Você vai sair daqui da Rampa e vão te colocar em outro lugar?

    – Tô fazendo de tudo pra isso.

    Já deu meu tempo aqui como olheiro. Tô cheio já. Eles viram que eu sou de boa, que sou um bom soldado. Tão querendo que eu cuide da boca do Larguinho.

    Tão só esperando os novinho chegar já. Só que essa parada toda tá atrapalhando tudo. Não pode sair, tem que ficar ligado.

    Fico puto com essas coroa que saem por aí. Não tá ligado que não pode sair? Nêgo fode tudo…

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    E você? Tá fazendo tuas diárias?

    – Eu só tenho ido lá pra Dona Joana. Ela disse no início que não precisava, mas depois disse o contrário. Tenho que ir lavar as cueca de seu André. Parece que ele não sabe tirar a roupa do cesto e colocar na máquina. Parece que cai a mão se fizer.

    – Tu te liga, hein? Os moleques ficam dizendo que tu sai logo de manhã, bem cedo e quando cehga a tarde tu já sobe, cheio de bolsa.

    – Você sabe que sou eu quem faço tudo, filho. Não dá pra parar. E eu não gosto de ficar incomodando os outros. A Celinha pergunta, quando ela vai lá no Preço Bom, se eu quero algo, alguma carne. Mas não é sempre que posso ficar dependendo. Subo a pé com as bolsas e quando dá, de moto.

    O Pedro pegou esse coronga, sabia?

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    – É corona, tia! – diz Ryan, amigo e companheiro na escuta de Jefferson.

    – E eu lá sei se é corona, coronga. Sei que o Pedro acabou pegando.

    – Claro, né? Ele não para. Outro dia teve que levar uma encomenda lá na Rua 2 pra nós. Os moto-táxi vão tudo se fuder, cara. Eles pega esses cara tudo sem máscara, ficam pra cima e pra baixo. E ainda tem esse capacete que fede que nem gambá, todo suado. (Jefferson)

    Se a pessoa não pega corona, pega sarna e piolho.

    – Eu até cheguei a ajudar ele, Jefferson. Dei umas cinco passagens.

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    Ele para, por alguns instantes e olha pra TV. No anúncio, vê uma notícia de que o ENEM foi adiado e ainda não tem data.

    Ela percebe e solta, olhando com atenção.

    – Lembra quando te levei pra fazer a prova lá?

    – Não toca nesse assunto, por favor.

    – Teu maior sonho naquela época era fazer essa prova. Eu paguei até aquele cursinho

    – Eu já falei que não quero ouvir falar dessa merda.

    – Vem cá, como tá Gisele? – ela tenta mudar de assunto, tentando cavar mais informações do filho.

    Quase sem querer responder, diz

    – Tá quase pra ganhar, já.

    Eu tô mandando dinheiro pra ela. Tá morando lá na Rua 6.

    – Queria poder te ajudar, meu filho. Gisele pode precisar de ajudar na hora, pra ver a criança, levar o bêbe.

    – Sozinha te garanto que ela não tá. A coroa dela até que passou a aceitar com mais calma a ideia de um netinho, mas ficou putarassa quando a Gisele falou que vai parar de estudar.

    – Ô Jefferson, você também poderia sair dessa, meu filho.

    – Deixa esse sonho pro teu neto. Agora vem cá: agora que eu tô reparando….Que bagulho é esse que tu tá na mão?

    – Eu acabei fazendo em casa, meu filho. Resolvi pegar um bocado de pano que não usava, e lá fui pra máquina de costura. Toma.

    Ele abre o saco e está cheio de máscara.

    – Coé, tu acha que vou usar isso? Iala, Ryan! Os muleques vão tudo me gastar.

    – Pensa na Gisele, Jefferson. Pensa no teu filho. Tu fica na rua, com esse fuzil enrolado como se fosse cordão de bicheiro. A máscara pode te salvar, Jefferson. E Jesus também…

    – Pronto…tava demorando pra começar. Se esse foi o motivo da tua vinda aqui, agora a senhora já pode ir. Daqui a pouco tenho que subir e dar o panorama daqui embaixo.

    – Meu filho, pensa com carinho. Usa a máscara. Vai ser melhor pra todo mundo. E se você quiser, tem álcool aqui nesse saquinho também.

    – Se adianta, coroa. Tá batendo tempo e conversa demais aqui. Deixa aí na mesa, vai que um dos moleques querem…

    – Ryan, tem pra você também.

    – Pô tia, fortaleceu…

    – E você fique bem, tá? O pastor outro dia falou que sonhou contigo.

    – Manda ele se fuder.

    – Calmaê né Jefferson?! Tua mãe, rapaz! Respeita! – fala Ryan

    – Deixa eu me ir. Tem um bocado de coisa pra resolver. Deus te guarde, meu filho.

    – Já é

    Ela sai, descendo novamente a rampa.

    Ryan olha e fala

    – Daria tudo pra que minha coroa não tivesse desistido de mim.

    Jefferson fica em silêncio, olhando pra imagem da mãe descendo a rua.

    * Edu Carvalho, morador da Rocinha, é jornalista. Trabalhou no programa Conversa com Bial e na CNN Brasil, vencendo o Prêmio Vladimir Herzog

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