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Matheus Leitão

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Blog de notícias exclusivas e opinião nas áreas de política, direitos humanos e meio ambiente. Jornalista desde 2000, Matheus Leitão é vencedor de prêmios como Esso e Vladimir Herzog
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‘Passei um dia inteiro morto’, diz Carpinejar sobre o ‘Manual do Luto’

Em entrevista à coluna, poeta revela história assustadora da infância que se conecta profundamente com seu quinquagésimo primeiro livro

Por Matheus Leitão Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 13 Maio 2024, 21h24 - Publicado em 3 set 2023, 16h06

Com apenas 5 anos, o menino Fabrício Carpi Nejar se desvencilhou dos pais em um cemitério e caiu numa cova que de rasa não tinha nada. Era profunda – assim como os efeitos dela em sua marcante personalidade.

“Foi um trauma fundador porque eu me comuniquei com a incomunicabilidade. Se eu não tivesse caído nessa cova eu não teria nem sido poeta na vida”, disse o escritor em entrevista à coluna sobre seu novo livro, Manual do Luto.

Era manhã, e Fabrício seguia uma “fila indiana” de familiares que iam em direção à lápide do avô, em Guaporé, na Serra Gaúcha. Mas o destino – “não tem como fugir [dele]” – o jogou nesse buraco no qual ele passou o dia aterrorizado, sendo resgatado somente à noite.

Carpinejar gritou pelos pais até cansar.

“A verdade é que eu sofri desesperadamente chamando mãe e pai até desistir de chamar. Eu não suporto, por exemplo, sentir cheiro de terra molhada. Eu não consigo ficar com meus pés presos. Você quer me agoniar? Me prenda os pés. E tudo descende dessa tortura de espera. Só fui resgatado de noite. Passei um dia inteiro morto”, revela.

Foi o amor pela leitura que o motivou a abandonar o grupo de familiares no sepulcrário do interior do Rio Grande do Sul. “Eu estava aprendendo a ler e escrever naquele tempo. Sozinho, dentro de mim, eu fui olhar as lápides, os nomes, as datas, as fotos ovaladas. E eu caí na cova aberta. Fiquei horas desaparecido”.

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Hoje conhecido – e reconhecido – por sua importante e vasta obra literária, o poeta renasce ou nasce ao ser resgatado da cova. Não é exagero dizer que ele viu a fenda na terra juntar os sobrenomes do pai, Carpi, e, Nejar, da mãe, formando Carpinejar.

“Eu fui colocando, ao longo dos anos, um punhado de terra nessa cova. Uma cova não tem como ser coberta com flores, é só terra. É só linguagem, é só falando, é o despojamento, é uma simplicidade. Não tem como enganar as aparências”.

De fato, Carpinejar não engana. Encanta.

Neste domingo, 3, o poeta está na Bienal do Livro do Rio, lançando esse Manual do Luto, livro no qual ele ara mais uma vez a terra no coração do leitor. Afinal, ele conhece bem esse poder.

Leia a entrevista a seguir:

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A sua sensibilidade é marcante. Impressiona. Você sente que ela tem um quê de sensorial?

Fabrício Carpinejar – Sim. Sem pensar. Sem mediação de pensamento. É como se eu tivesse sentindo antes de pensar. É como se o meu pensamento fosse atrasado. Sempre chegasse atrasado. É como se o pensamento sempre chegasse depois que tudo já aconteceu… um encontro já foi feito. Que eu já falei. Que já descobri. Desde que eu caí numa cova desde pequeno.

Como assim? Isso aconteceu de fato?

Carpinejar – Aconteceu de fato. Foi um trauma fundador porque eu me comuniquei com a incomunicabilidade. Eu fui visitar o meu avô no cemitério com a família, no cemitério de Guaporé. Em um momento, eu me desvencilhei da fila indiana rezando e fui explorar as lápides.

Você tinha quantos anos?

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Carpinejar – Cinco anos. Eu estava aprendendo a ler e escrever naquele tempo. Sozinho, dentro de mim, eu fui olhar as lápides, os nomes, as datas, as fotos ovaladas. Que a vida é isso, né? São essas fotos ovaladas. Tu vai ’ovalando’ as suas fotos. Quanto mais jovem, mais quadradas as fotos. E eu caí numa cova aberta e fiquei horas desaparecido.

E você tem lembrança desse momento? 

Carpinejar – Demorei a ter. Eu só fui descobrir quando escrevi Depois é Nunca [último livro de Carpinejar, mais um best-seller]. Eu fiquei com escombros, com uma lembrança acobertada. E por que? Porque virou piada familiar. As piadas escondem os verdadeiros sofrimentos. E a piada dizia que eu caí numa cova e eu teria saído de lá dizendo: “Esse já voou. Não tem mais ninguém”. Mas a verdade é que eu sofri desesperadamente chamando mãe e pai até desistir de chamar. Eu não suporto, por exemplo, sentir cheiro de terra molhada, muito molhada. Eu não consigo ficar com meus pés presos. Você quer me agoniar? Me prenda os pés. E tudo descende dessa tortura de espera. Eu, por algum momento, me senti morto. Eu me perdi do grupo de manhã e só fui resgatado de noite. Passei um dia inteiro morto.

E isso te conectou…

Carpinejar – Sim, me conectou com o sofrimento. Se eu não tivesse caído nessa cova eu não teria nem sido poeta na vida.

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Então, eu te pergunto: você preferia ter caído ou não?

Carpinejar – Não tem como fugir do destino. O que você pode fazer é cuidar dele até o fim. Quanto mais você foge, maior é o fardo. Eu não amaldiçoo a minha sensibilidade. Da mesma forma que ela me fez ser mais agudo na tristeza, também me fez ser mais expansivo na alegria. Eu acredito que a felicidade entra pela mesma porta da tristeza. É aquela sensibilidade extremada para ambos os casos. Prefiro ser sensível a indiferente.

Com que intensidade essa experiência se revela no Manual do Luto?

Carpinejar – Total. Porque ela me fez entender que cada um tem o seu tempo. E tentam normatizar o luto de uma maneira coletiva. Como se houvesse uma legislação para o luto. O luto não é terminável. O luto você carrega para sempre. E você pode estar sofrendo por um gato aquilo que você sofreria por um pai. Você pode estar sofrendo por um cachorro aquilo que sofreria por uma mãe. Você pode estar sofrendo por um irmão aquilo que sofreria para uma família inteira. A intensidade é de acordo com o que foi vivido, é de acordo com a proximidade, é de acordo com a entrega, com a doação.

E como entender isso?

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Carpinejar – Nunca acreditar que uma dor é uma bobagem. Apenas ouvir. É um território do outro. É como se você estivesse entrando naquelas lojas de cristais, tendo que olhar bem onde pisa para não derrubar nada. Existe uma fragilidade exposta. Eu não sei o que é importante para o outro, nem o que é importante para você, Matheus. Você pode ter um relógio parado, que nem tem valor comercial, mas você não sai sem ele. É seu relicário.

No Manual do Luto, você aborda vários tipos de luto. Mãe, pai, amor, filho…

Carpinejar – O mais irreparável e irreversível é o filho. É aquele que eu digo que você tem medo de morrer. Quando nasce um filho e você passa a ter medo de morrer. É a primeira vez que você vive por alguém. Antes você vivia de modo inconsequente por você mesmo. É uma doideira. A responsabilidade é a maior loucura que existe [Risos].

Você parece querer abraçar a todos.  Mas qual enlutado você abraçaria primeiro? 

Carpinejar – O primeiro seria quem perdeu o filho, quem teve que enterrar o filho. Sempre em primeiro lugar. Será a prioridade de todas as prioridades porque você cria uma existência paralela quando um filho morre, imaginando todos os aniversários. Isso porque você já tem a paternidade e a maternidade dentro de si. A ativação de uma memória imaginária. Você imagina o seu filho viajando sozinho, você imagina o seu filho se formando, casando, você imagina o seu filho tendo filho. Você vai imaginando porque é como se você pudesse bordar o futuro. Há algo mais simbólico do que perder um bebê, por exemplo. E você já tem todo o enxoval pronto, o quarto, as gavetas cheias de roupinhas. Você não tem força nem para passar adiante porque não teve nenhuma vida que o ocupou aquelas golas. É como se você tivesse o seu futuro usado indevidamente por alguém. Alguém rouba o seu futuro. Tudo é pequeno para uma dor gigantesca. O sapatinho é pequeno, o travesseiro é pequeno.

No livro, você relata duas experiências de morte próximas a você. Você deixou alguma de fora?

Carpinejar – Eu quis trazer experiências em que a morte acontece lateralmente e que você não espera. É como se a morte estivesse por acontecer. A sogra, o barbeiro. Estavam por acontecer. É quase como se estivesse se antecipando a ela. E eu acredito que as pessoas mudam perto do seu fim. Elas recebem um chamado diferente, uma iluminação diferente, uma serenidade diferente, um tratamento diferente, nas conversas mais triviais. A conversa que eu tive derradeira com o meu barbeiro destoava de tudo que já tínhamos conversado antes. E é de arrepiar que eu estivesse falando do livro e que ele acabaria entrando nele. Até aquele momento eu acreditava que o livro estava pronto. Ele morre para entrar, para nascer no livro? Então, existe uma simultaneidade acontecendo na hora que você lê o Manual do Luto, porque eu tô falando de um livro que a pessoa está lendo, é como se fosse uma fenda no tempo.

Teria algum momento do livro que você escolheria para ser o guardanapo? Quando li, fiquei com um trecho que mexeu muito comigo, o de acessar sentimentos que você não acessa ao lado da pessoa amada em vida. 

Carpinejar – Eu acredito que essa é a senha do livro. Total, total! Você recebe uma espécie de compensação, né?! Você só tem acesso a uma memória com a ausência. Tu não tem como acessar estando com a pessoa.

Sim, ou talvez você acesse ela de uma outra forma. É isso que você está querendo dizer também?

Carpinejar – Exato! Mas é como se criasse um racionamento daquela memória. Você tem lembranças graduais para alimentar a saudade ao longo do tempo, para que a saudade não encontre uma inanição. Você não tem mais aquela vida, mas agora você pode ter uma memória do que você não lembrava ao lado dela.

Daria para dizer que o seu primeiro trabalho foi o texto que fez para o convite de velório da sua avó, aos oito anos?

Carpinejar – É verdade. Eu diria que foi o primeiro poema da mãe publicado e o meu primeiro poema publicado. Que até o momento meu pai era o poeta. A mãe só foi publicar o seu primeiro livro aos 40 anos. Ela escrevia em segredo. E saiu o poema da [minha] mãe de um lado e o meu do outro. Eu tenho esse convite de enterro em Porto Alegre. Meu avô tinha morrido antes que minha avó, só que a minha avó chegou primeiro no céu [Risos]. O meu avô teve uns quatro anos de sala.

E esse menino que escreveu esse texto – e aqui eu acrescento aquele menino que ficou na cova o dia inteiro – imaginava que poderia ajudar a consolar tantos corações?

Carpinejar – Acho que sim. Eu fui colocando, ao longo dos anos, um punhado de terra nessa cova. Uma cova não tem como ser coberta com flores, é só terra. É só linguagem, é só falando, é o despojamento, é uma simplicidade. Não tem como enganar as aparências. Talvez seja assim que a gente se apaixona por alguém: por uma dor em comum, não por uma alegria. Talvez seja assim que a gente se torne o melhor amigo de alguém. Quando você descobre o parentesco com o sofrimento. E ambos são tão insolúveis. Porque você sabe que precisa daquela pessoa e sabe que aquela pessoa vai respeitar o que você sentiu. Sabe que ela não vai profanar a sua fragilidade. Quando você conhece alguém na fragilidade você sabe que ela nunca vai maltratar o seu ponto fraco. Você vai procurar na vida quem possa entender o seu sofrimento. Nas grandes amizades, os grandes diálogos são de longo silêncio. Fique junto de quem você não se sinta desconfortável por não falar nada. É cansativo ter que falar sempre.

Esse texto para o velório de sua avó foi feito para trazer consolo à sua própria família? 

Carpinejar – Eu fiz para consolar minha mãe. Os mortos sempre aparecem de algum jeito. Escolhem algum vivo para dar a notícia. Eu tenho certeza que a minha mãe, naquele momento, não viu o filho, viu a sua mãe. E, às vezes, não ser você exige personalidade forte.

E como se preparar para a morte de pessoas amadas?

Carpinejar – Se preparando para sua própria morte. É porque, quando alguém morre, é você que morre para ela. É você que não aceita isso. É você que deixa de existir. É você que não pode mais pedir ajuda. É você que vai precisar lidar com o imperfeito, com a insuficiência, com o dito, o não dito. É você que vai precisar dar um sentido ao que foi partilhado, confidenciado lado a lado. Outra pessoa não tem como dizer que isso foi mais importante ou aquilo. Você vai criar uma hierarquia. E cada morte é específica. O que você pode tentar fazer é criar segredos com seus afetos.

Você faz isso?

Carpinejar – Faço! Eu tenho segredos com o Vicente, com a Mariana, com a Beatriz [filhos e esposa]. Tem histórias que eu conto para um e não conto para o outro, porque eu já reconheci que o entendimento nunca é igual. Há histórias que Vicente precisa mais do que a Mariana, que a Mariana precisa mais do que o Vicente, que a Beatriz precisa mais do que os filhos, histórias que os meus pais precisam.

Olhando para o Clube dos Corações Solidários [grupo de cartas sobre o luto criado por Carpinejar em maio e que tem 25 mil inscritos], o que mais te marca?

Carpinejar – Quando eu recebo um relato do clube do luto, e alguma pessoa pode estar inventando o que aconteceu, eu fico feliz que a pessoa colocou algo no lugar do vazio.

Não há uma condenação, então? 

Carpinejar – Nenhuma. Não existe mentira no luto, a mentira é abolida. Existem realidades intermediárias até você conseguir enxergar tudo. Na hora que você está se despedindo de alguém e a pessoa está sofrendo, e você tenta confortá-la, dizendo: ‘Ah, ainda vamos rir disso tudo.’ E você dá esperança, e a esperança não se realiza. Você sabe que seu familiar nunca vai sair dali, nunca mais vai ter a chance de recuperação fora do hospital. Você mentiu ou deu esperança? A esperança é muito melhor do que a mentira.

O que aquele menino que foi tirado de dentro da cova, e renasceu depois de algumas horas, diria?

Carpinejar – Eu diria: “demorô” [Risos]! Sempre é demorado. Sempre chega mais tarde a ajuda do que aquilo que você precisava. No fim, você acaba se ajudando. Há duas solidões que não tem como abolir: a da morte e a do nascimento. Repare. Quando nasce um bebê, é o momento que a gente usa os números quebrados. A gente tem medo que não dure. Aí nasce o bebê e você comemora um dia, dois dias, um mês, dois meses… Você só voltará aos números quebrados quando morrer alguém. Morreu alguém, deixamos de arredondar a idade. Você homenageia a morte 7 dias… um mês… dois meses… três meses do falecimento. Tanto no nascimento quanto na morte os números são quebrados. Um dia, depois do outro. O resto é fingir os aniversários inteiros. São os únicos dois momentos que a gente usa números quebrados. São os dois momentos de profunda consciência da finitude: uma pela alegria e outra pelo pesar.

Obrigado pela oportunidade de ser o primeiro leitor de Manual do Luto (saiba mais sobre o livro aqui) E por essa entrevista…

Carpinejar – Foi uma conversa tão densa que agora eu tô desidratado [Risos].

Eu to hidratado, obrigado [Risos].

Carpinejar – As águas correm…

Como escrevi na matéria do livro, você fala com a alma, e por isso se conecta a todos.

Carpinejar – É se doando que não dói tanto.

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