O ano era 2010: Bolsonaro já atuava contra os direitos humanos, mas ainda era um reles deputado do baixo clero, o horário eleitoral gratuito ainda era inquestionavelmente a publicidade mais importante numa campanha e o PSDB ainda tinha poder para disputar com força um segundo turno na eleição para a presidência.
O Brasil ainda estava ali traçando outro caminho na história, porém, também naquele momento, um tema acabou mobilizando a segunda volta das eleições: o debate em torno do aborto. No seu primeiro programa eleitoral na TV, José Serra, candidato tucano, jogou toda a ênfase nessa questão. Repetiu que sempre condenara o aborto e que tinha valores cristãos. Diante desse posicionamento, o programa de Dilma Rousseff trazia uma mensagem na qual se reforçava que ela era “uma mulher honesta, que respeita a vida e as religiões”. Dilma tentou, enquanto conseguiu, navegar usando o clássico “sou contra, mas temos questões de saúde pública”, enquanto o PSDB dobrava a aposta. A religião tomou o debate daquele segundo turno da eleição presidencial, que acabou vencida pelo PT.
Quase 14 anos depois, em um cenário completamente diferente, o ataque tomou também dimensões inesperadas na última semana na Câmara, de restrição do direito ao abortamento ilegal, com a proposta de aumento da punição a mulheres violadas que, engravidando, recorreram à interrupção de gravidez. Os motivos políticos aviltados para esse movimento de Arthur Lira são muitos, mas há um fato concreto: o direito das mulheres ao aborto legal – garantido há quase um século – foi instrumentalizado em meio à disputa política (majoritariamente protagonizada por homens, convém destacar) sobre outros temas em outros campos.
A agenda em defesa das mulheres é constantemente negligenciada ou utilizada como moeda de troca quando se trata da política. Nos anos 70, era o “vamos derrubar a ditadura, depois a gente cuida dos direitos das mulheres”. A promessa era que a democracia nos traria o direito ao aborto até 12 semanas; acabaria com a violência doméstica e o volume de estupros e feminicídios ocorridos no Brasil.
O mesmo recurso foi utilizado recentemente com a perspectiva de “vamos primeiro tirar Bolsonaro da presidência e depois cuidamos das questões das mulheres” – isso ainda que aproximadamente 55% do voto feminino tenha ido para Lula, o que garantiu sua vitória. Tamanha é a cobrança de que as mulheres se adequem aos desígnios deste fazer político que há constantemente a crítica ao movimento como tendo ajudado a dispersar a esquerda. Chegam a afirmar que o “Ele não” foi um dos responsáveis pela pá de cal sobre o PT nas eleições de 2018.
Não resta dúvidas de que a democracia é o único caminho aceitável, mas as instituições e as pessoas que as fazem continuaram reproduzindo o machismo depois de 1985. Assim como ter partidos mais progressistas é bem mais vantajoso às mulheres que partidos conservadores ou de extrema-direita. Com o retorno de Lula ao poder, não era esperado que os problemas das mulheres estariam todos resolvidos, mas é mais que legítimo que avanços sejam cobrados e – sobretudo – que não permitamos retrocessos.
Em nada surpreende que um Congresso conservador como este vá atacar diretamente o direito das mulheres, lançando mão da agenda posicional do aborto. Mas é esperado muito mais de um governo que subiu a rampa daquele jeito.
Finda a ditadura, a eleição de 2010 e o governo Bolsonaro, ainda são muitos os direitos a que as mulheres não têm acesso pleno no Brasil; a própria dificuldade de estar nos espaços de poder é um dos exemplos. Ocupando menos de 20% das cadeiras da Câmara, mas em massa de volta às ruas, as mulheres avisam que não aguentam mais esperar para, apenas no “momento adequado”, lutar pelo direito sobre seus próprios corpos. A maternidade indesejada não pode ser moeda de troca.
* Débora Thomé é cientista política, pesquisadora da FGV/Cepesp. Autora de “Mulheres e Poder” (FGV Editora). A partir dessa semana, ela passará a escrever regularmente para o blog não apenas sobre mulheres e política