Durante os séculos 14, 15 e 16, a Europa ocidental enfrentou crise agrária, fome e pestilências. A igreja de Roma era a detentora do poder e do controle sociais e por estar corrompida em todas as instâncias, utilizava a situação adversa que o mundo enfrentava a seu favor.
A Igreja de Roma criou a doutrina do purgatório (que objetivava construção da Basílica de São Pedro no Vaticano), prometendo alívio para um mundo que enfrentava dor e morte todos os dias. Assim, os oficiais da Igreja passaram a absolver as almas que se encontravam no purgatório por meio da venda das indulgências. Havia até mesmo alguns cambistas do perdão divino, como o famoso frade dominicano João Tetzel, que enquanto comercializava indulgências, cantava nas esquinas da Saxônia em tom de deboche: “Quando uma moeda na caixa ressoa, uma alma ao céu voa!”
Naquele período (séculos 13, 14 e 15), muitos homens e mulheres tementes a Deus dentro da Igreja Católica, protestaram por uma reforma religiosa em suas estruturas. Como resultado, muitos morreram na fogueira, como John Wyclife e John Huss – precursores da Reforma.
Com a chegada do século 16, a degradação religiosa aumentou ainda mais. A lista de corrupções e absurdos instituídos pela Igreja era algo impensável. Por exemplo, havia uma lista com cerca de 35 condições de pagamentos e absolvições da igreja, entre as quais se destacava as seguintes: “o eclesiástico que incorresse em pecado carnal, com freiras, primas, sobrinhas, afilhadas ou, enfim, com outra mulher qualquer, seria absolvido mediante o pagamento de 67 libras e 12 soldos” e “se o eclesiástico, além do pecado de fornicação, pedisse para ser absolvido do pecado contra a natureza ou bestialidade, deveria pagar 219 libras e 15 soldos. Mas se tivesse cometido pecado contra a natureza com crianças ou animais, e não com uma mulher, pagaria apenas 131 libras e 15 soldos”.
Em meio aquele mar de adulterações e imoralidades, no dia 31 de outubro de 1517, o monge agostiniano Martinho Lutero, afixou na porta do da catedral do castelo de Wittenberg, as suas 95 teses contra o Papa Leão X, dando início a um debate acadêmico que eclodiu na Reforma Protestante. Em 1521 Lutero foi levado a cidade de Worms e diante da cúpula religiosa oficial, foi intimado a renegar as suas 95 teses, entre outros escritos que afrontavam a Igreja. Mesmo diante da morte, correndo o risco de ser jogado na fogueira, Lutero protestou reafirmando a sua posição. Diante de poderes e autoridades, ele exclamou: “A menos que seja convencido pelo testemunho das Escrituras ou por uma razão clara, sou limitado as Escrituras que citei e por minha consciência cativa à Palavra de Deus. […] Não posso agir de outra forma: esta é a minha posição, que Deus me ajude. Amém”.
Lutero não voltou atrás de suas ideias e como fruto de sua coragem, inúmeras reformas protestantes surgiram na Europa e transformaram radicalmente não só o mundo religioso da época, mas também a cultura, as artes, a política, a educação, a economia e a ciência, estabelecendo o nascimento do chamado mundo moderno. Como desdobramento da tese luterana de que não havia diferenciação entre clérigos e leigos e de que todos tinham a “imago Dei” (imagem de Deus), a Reforma Protestante lançou os fundamentos dos conceitos modernos da liberdade, da igualdade e da fraternidade, inspirando as mentes daqueles que viriam a insuflar a Revolução Francesa no século 18.
A Reforma, com suas ênfases na dignidade da pessoa humana e na liberdade de consciência do indivíduo, fortaleceu o ideal do Estado secular, contribuiu para o crescimento da política regional, formulou o sistema de educação pública, elevou o status da mulher, influenciou a abolição da escravatura, minorou o tráfico humano e a prostituição, baniu a queima de hereges nas fogueiras e desencorajou o genocídio de deficientes e o sacrifício de crianças – lutas que persistem até os dias de hoje.
Embora haja pouco reconhecimento da sociedade contemporânea sobre o legado da Reforma, os seus contributos estão aí. Todos desfrutamos de suas importantes conquistas humanitárias. Portanto, vale a pena relembrarmos desse marco histórico que hoje completa 504 anos. Viva a Reforma Protestante!
* Rodolfo Capler é teólogo, escritor e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP