Tiradentes era o “Corta-Vento”, dizia dele o poeta Cláudio Manuel da Costa. Vivia se movendo de um lado para o outro, conhecia os caminhos e os atalhos que recortavam o território das Minas, e não se deixava pegar com facilidade pelas autoridades portuguesas. Ele foi o mais ativo propagandista das ideias de liberdade e república que sustentaram o projeto político da Conjuração Mineira e o grande responsável por colocá-las em circulação no interior de uma rede formada pelo entrecruzamento de diferentes grupos sociais.
O Brasil de hoje vive uma crise sem precedentes na sua história. O presente se afigura sombrio e existe o risco real de a Democracia entrar em colapso em nosso país. Pode ser um bom momento de nos dirigirmos ao passado para compreender a nós mesmos. E então, se nos aventurarmos fundo o bastante sem que acabemos nos perdendo em alguns dos recantos mais tumultuados ou exóticos das Minas do século XVIII, quem sabe a história não esteja de todo esquecida e a voz irreprimível de Tiradentes ainda tenha algo a dizer aos brasileiros? Um punhado de palavras – liberdade, soberania, felicidade, república – desejosas de se fazerem compreender em qualquer tempo?
Quiçá o Alferes recomende aos brasileiros retomarem o passo do ponto onde a Conjuração Mineira parou – afinal, foi essa a herança que nos deixou. Só se conjura, explica Tiradentes, para tomar de volta a liberdade perdida de uma República. Decerto vai insistir: A liberdade além de um atributo do pensamento e da vontade também se manifesta no âmbito público, no espaço da palavra e da ação. Praticar a liberdade, ele talvez nos diga, significa que podemos experimentar a oportunidade de discutir uns com os outros a nossa existência pública e decidirmos o que vamos fazer em comum para o nosso bem. Por exemplo: buscar a felicidade, assegurar o valor da igualdade como direito de todos, mitigar a dor.
Mas Tiradentes vai confirmar aquilo que já deveríamos saber por força de tudo o que estamos vivendo nos dias que correm. Sem a identificação com o outro a sociedade se degrada, perde a noção de responsabilidade mútua, o fato de que compartilhamos de um destino único. República não é só um modo de governo onde se pratica a boa gestão da coisa pública; é também um modo de vida em uma sociedade que se orienta por um conjunto de valores praticados cotidianamente pelos cidadãos: solidariedade, tolerância, compaixão. Sem isso, resta medo e tirania. Uma sociedade onde não há espaço para os valores do mundo público é apenas um aglomerado de homens e mulheres vorazes, violentos, solitários, egoístas e ressentidos.
Ele sabia, certamente, o que queria dizer. A dois séculos de distancia, recordar o que já foi ouvido nesses ares de Minas significa tomar posição a favor da liberdade. Tiradentes infundiu muita energia no poder e na força de algumas palavras. Nós podemos refletir sobre essas palavras, questionar e recordar – para pensar sobre o que estamos fazendo hoje. Conhecer um pouco do que foi posto pelo passado em nosso caminho significa encontrar o legado possível para um futuro ainda em aberto. E refletir sobre o brasileiro que queremos ser.
* Historiadora e cientista política, Heloisa Starling é professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)