Peço licença ao leitor desta coluna, mas Miriam Leitão – sim, minha mãe – recebeu neste final de semana o troféu Juca Pato, prêmio literário de intelectual do ano da União Brasileira dos Escritores.
Criado em 1962, a estatueta já foi entregue a nomes como Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, Cora Coralina, Rachel de Queiroz, Érico Veríssimo, Luís Fernando Veríssimo, Sérgio Buarque de Holanda, Jacob Gorender, Dom Paulo Evaristo Arns, Lygia Fagundes Telles, Barbosa Lima Sobrinho, Sobral Pinto, Juscelino Kubitscheck, Fernando Henrique Cardoso, Ignácio Loyola de Brandão, Antônio Cândido, Antônio Calado, Alberto da Costa e Silva, Dalmo Dallari, José Mindlin, Frei Betto, Padre Julio Lancellotti, Laerte Coutinho e Conceição Evaristo.
Uma mistura de sentimentos me tomou ao vê-la receber tamanha honraria. A verdade é que algo se encantou naquela noite em Itabira, terra de Drummond, o maior de todos. O encantamento de algo que sonhei para ela. O encantamento do desejo dos meus ancestrais Uriel e Mariana. De Elizabeth Leitão, tia que faleceu recentemente.
Mas esse não é um registro de um filho sobre uma mãe ou sobre uma família, mas de um jornalista e escritor que vê sua maior referência – aquela que você sempre acompanhou dentro de casa – colocando seu nome numa lista de pessoas que deram enorme contribuição para a história do Brasil.
Ao receber o prêmio, Miriam Leitão fez um emocionante discurso. Leia a seguir:
“Antes de tudo, quero agradecer a União Brasileira de Escritores. Olha que lindo o nome – União Brasileira de Escritores. Temos que ter mais e mais escritores na União Brasileira de Escritores. Muito obrigado a vocês que dirigem a União Brasileira de Escritores. Muito obrigada, Ricardo Ramos Filho, que preside a União Brasileira de Escritores. A minha mãe, Mariana, gostava de cantar na igreja um hino que chama chuva de bênçãos. Hoje eu me sinto vivendo uma chuva de honras. É muita honra tudo que eu estou vivendo. É mais do que eu posso segurar. Hoje, várias vezes eu estava tremendo. Tava esquisita, meio ausente e meio presente. Lembrava da minha vida inteira. A vida inteira passava pela minha cabeça mas eu tenho mais agradecimentos a fazer. Quero agradecer a quem me entregou o prêmio. Conceição Evaristo, não é somente porque você me entregou o prêmio, mas por você ser quem é: uma referência na literatura brasileira. Você escreveu livros icônicos. Vou ficar apenas em Ponciá Vicêncio. É um livro muito profundo. Você é uma grande escritora, uma maravilhosa escritora. Então, me honra ser você que passa o Juca Pato pra mim. O bastão. É muita honra enorme. Talvez eu nem segure tanta honra. Estou aqui me balançando. Quero agradecer também ao Eugênio Bucci. Nós conhecemos o mesmo Sidnei Basile e acreditamos no mesmo jornalismo. Nós acreditamos que o jornalismo tem um papel profundo numa sociedade por mais desafiada que ela seja. E nesse momento, quando parece que o jornalismo vai acabar, é quando resistiremos mais. Muito obrigada por todas as suas palavras. Foram tão profundas, um pouco exageradas. Um pouco exageradas, mas exagerada mesmo é a minha amiga Flávia Oliveira. Não acreditem em nada do que ela fala, porque ela tem um lado. Ela é minha amiga, muito amiga. Agradeço. Muito a você, é muito a honra ter toda a sua fala, seu relato. Eu queria agradecer a minha família que está aqui presente. Sérgio, Matheus, Vladimir e o meu irmão Cláudio que apareceu de surpresa aqui. Meu irmão Cláudio é o quinto dos doze filhos dos meus pais. Eu sou a sexta. E Cláudio, eu tenho uma tarefa pra você. Conta lá em Caratinga que aquela menina que vivia agarrada nos livros… pois é, ela realizou seus sonhos. E ela tem mais sonhos. Hoje está um dia tão esquisito, tão estranho, que tudo está falando comigo, tudo está falando comigo. Até o meu horóscopo. O que é isso? Abri o horóscopo estava assim. As pressões são enormes, mas porque os resultados são colossais. Ricardo Ramos, esse prêmio é colossal. E estava lá no horóscopo. E terminava assim o horóscopo: não desista dos seus planos. E eu quero dizer pra vocês que eu tenho planos. Eu tenho planos. Eu tenho vida vivida, sonhos sonhados, sonhos realizados e sonhos novos a cada dia. Eu queria agradecer a todos vocês que estão aqui, mas especialmente eu queria agradecer aos meus colegas de profissão de jornalismo e de escritura, os escritores. Especialmente também a quem é de Itabira. Itabira é um retrato em todas as paredes porque ela nos lembra. Queria agradecer mais uma vez ao prefeito Marco Antônio Lages. Itabira nos lembra que a palavra tem um poder tão impressionante que ela fica, permanece constrói identidades. Carlos Drummond Andrade, grande poeta brasileiro, o maior de todos, deu isso a essa cidade. Pertencimento. Ela pertence a palavra, ela pertence a poesia. E isso é lindo. Parabéns Itabira. Itabira é e sempre será. E sempre será. Levar um pico do Cauê? Itabira sempre será. Nós todos sabemos do Pico do Cauê. Porque tem uma palavra. Porque ele cantou e chorou o Pico do Cauê. Então, eu fiquei nesse dia de hoje, Ricardo Ramos, conversando com a menina que eu fui, conversando comigo mesma, pensando em todas as pessoas, em todos os livros que me trouxeram até aqui. Eu cheguei aqui carregada por pessoas, afetos e livros. Isso me trouxe aqui. No dia que o Ricardo Ramos Filho me contou que eu ganharia o prêmio estava descendo do elevador, em Belo Horizonte, para ir na festa de celebração da vida da minha irmã Beth Leitão que acabara de falecer. Vamos celebrar a vida dela como ela pediu que a gente fizesse. Não teve enterro porque ela doou o corpo para estudos da ciência. A gente fez uma festa e um culto. Mas Ricardo me contou e eu imediatamente peguei o telefone pra ligar para Beth. Ia contar para Beth porque ela ia gostar de saber. Ela ia gostar de estar aqui. Beth plantou em mim todos os sonhos. Ela me mostrou Drummond de forma grandiosa. Ela falava assim, olha aqui, vou ler pra você. Ela lia lindamente e ela falava: ‘olha a sonoridade’. Essa poesia tem música. Ela declamava Castro Alves como ninguém. Ela falava, leia esse livro. São retirantes, vem do Nordeste. Sinhá Vitória, Fabiano, menino menor, menino maior e Baleia. Leia e depois me fale. Eu falei, Beth, os meninos não têm nome? ‘Então Mirinha, então você pegou o espírito. Os meninos não têm nome. Mas a Baleia tem’. E isso tem um significado. Tudo em literatura tem um significado. Ela me pegou pela mão e mostrou desde os livros da minha primeira infância. E foi me mostrando. Mostrando, leia esse livro: Grande Sertão Veredas, ele inventa uma linguagem nova, uma língua nova. E assim foi pela vida a minha grande professora de livros. O Cláudio sabe porque me conhece desde sempre. Eu amo os livros. Eu sempre amei. Então, como eu lia muito, muito, muito, um dia na prisão, e eu já contei isso em um outro festival… a prisão tem várias fases, vários momentos, a dor aguda e a dor crônica. A dor aguda é a hora da tortura física, mas tem aquela hora que o tempo fica parado no ar e você não sabe o que vai acontecer com você no próximo minuto, no próximo dia. E você fica numa cela parada e não podia ler nada. Ler nada. Isso era uma segunda parte da tortura. Então eu fechava os olhos. Então eu pensava nos livros. Eu pensava em Drummond. Eu pensava em Graciliano Ramos. Eu pensava neles. Eu pensava nas histórias. Eu lembrava de Sinhá Vitória. Eu lembrava do Fabiano. Eles vinham. Eu lembrava de todos eles. Eu lembrava da Baleia. Eu lembro. Eu pensava em Diadorim e Riobaldo. E eu pensava em cada um dos livros que eu tinha lido. E isso me fazia muito forte. Me fazia mais forte. Então os livros me fizeram, mas muita gente me trouxe até aqui. Quando eu era pequena e vivia agarrada nos livros, meu pai Uriel, que sempre gostava de botar sonhos lá em cima, o sarrafo alto: ‘Mirinha, você vai escrever livros’. Ziraldo, em Caratinga, era um acontecimento. Ele escrevia livros. Então de Caratinga a gente podia escrever livros. Hoje a Daniela Thomas me manda um WhatsApp. Eu falei, gente, tudo está falando comigo hoje. Ziraldo, minha referência. Esse dia foi muito, foi de encantamento. Foi um dia de encantamento para mim. Então é o que eu queria dizer para vocês. Que hoje eu vivi um dia glorioso, que eu sou muito feliz. Então, eu agradeço muito a todos vocês que estão aqui, que estão vendo esse meu momento. Agradeço toda a diretoria da UBE mais uma vez, desejando muito sucesso e longa vida para um prêmio tão lindo e para a União dos Escritores Brasileiros. E eu queria, segurando mais uma vez o prêmio, dedicar ele a Elizabeth Leitão. Eu dedico esse prêmio a minha amada irmã Beth. E que os meus filhos digam aos meus netos que os livros são fundamentais para a vida, como a Beth uma vez me disse. Digam para Mariana, Daniel, Manuela e Isabel e vamos dizer para Mel, para Lully, para o Fred, sobrinho filho da Beth. Beth, querida, obrigada por todos os livros, por todas as lições, por todo o amor que nós sempre compartilhamos. Muito obrigado”
Apesar de você, canção de Chico Buarque, diz que “amanhã há de ser outro dia”. O outro dia chegou para Miriam Leitão, eterna.