O ano de 2020 ficou marcado por fatos como a pandemia (de proporções não vistas desde a Gripe Espanhola em 1918), o fechamento das fronteiras nacionais (não visto desde a Segunda Guerra 1939-1945) e o fortalecimento global da luta antirracista (ecoando o movimento dos direitos civis da década de 1960). Foi o ano dos “cancelamentos” (de personalidades virtuais às Olimpíadas de Tokyo) e dos “governantes incidentais”, mandatários que demonstraram absoluto despreparo em quesitos básicos de liderança pública (a razoável exceção foi Angela Merkel).
O genuíno ineditismo de 2020, entretanto, está no campo técnico-científico. Podemos citar dois exemplos emblemáticos: o início da exploração espacial pela iniciativa privada (com a primeira missão tripulada da SpaceX) e o desenvolvimento das primeiras vacinas contra a Covid-19 (em tempo recorde na história da medicina). A herança mais imediata para 2021 é justamente uma série de conflitos discursivos como “pró-vacina versus antivacina” e “cientistas versus políticos”. Esta situação é resultado tanto da ausência de lideranças qualificadas como do aumento da complexidade social, e deixa as democracias constitucionais expostas ao velho perigo do moralismo político anticientífico.
As raízes desta situação remontam ao período Iluminista, quando se estabeleceu a distinção do discurso em dois tipos: aquele cuja finalidade é promover o “bem” e aquele que aspira a estabelecer o “verdadeiro”. Os iluministas afirmaram uma dicotomia entre o domínio da vontade, cujo horizonte é o “bem”; e o domínio do conhecimento, orientado para o “verdadeiro”. O exemplo da primeira ação seria a atividade política; da segunda, a atividade científica. Os iluministas concebiam, assim, uma diferença entre fato e interpretação, entre ciência e opinião, verdade e ideologia. Ambos os campos do saber são fundamentais para o desenvolvimento da sociedade. O problema surge quando um campo invade a competência do outro. Deste modo, “moralismo” é impor uma ideia de “bem” no âmbito do “verdadeiro”, ou seja, sob pressão da vontade, os fatos se tornam uma matéria maleável. Por outro lado, o perigo inverso é o “cientificismo”: quando os valores parecem decorrer do conhecimento e as escolhas políticas se travestem em deduções científicas.
Como 2020 deixou claro, o moralismo anticientífico está mais vivo do que nunca. Para neutralizá-lo em 2021 é necessário um esforço conjunto de lideranças competentes em ambos domínios, ciência e política. Em todo caso, conquistar o respeito público é um fator essencial. Hoje, o recurso mais escasso do planeta é este: credibilidade.
* Davi Lago é pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo