Mais de um mês se passou desde que a população do Amapá se viu completamente no escuro pela primeira vez. Durante 22 dias, um estado inteiro ficou sem energia. Nesse período, uma série de questionamentos foram feitos para entender o que aconteceu para o Amapá, que hoje é interligado ao sistema elétrico nacional, permanecer no escuro durante tanto tempo. Uma sucessão de erros, decisões equivocadas, falta de planejamento, fiscalização deficiente e punição pouco efetivados de atores públicos podem ser considerados alguns fatores que levaram a essa situação.
Se formos voltar no tempo, o problema começou em 2008, quando o Operador Nacional do Sistema (ONS) e a Empresa de Pesquisa Energética previram apenas um único ponto de conexão do Amapá ao Sistema Interligado Nacional, sem uma estrutura de backup. Com a infraestrutura instalada dessa forma, em caso de sinistro em qualquer dos ativos (subestação, linha de transmissão, torre de transmissão), o atendimento ao Amapá ficaria comprometido.
Mesmo diante de um cenário arriscado, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) deu o aval final para o desligamento de uma usina térmica existente no local, que poderia ter sido acionada em um caso de emergência.
Antes da interligação, o Amapá era abastecido por termelétricas a diesel, a exemplo das Usinas Termelétricas Santana e Santa Rita, de titularidade da Eletronorte. A UTE Santana foi desativada pela Portaria MME 229/2019, com o aval da Aneel. No referido processo, a Aneel recomenda a desativação da usina, levando em consideração análise do ONS, que afirmou que “não se justifica a alternativa de elevar a geração na região de Macapá por meio da UTE Santana, em razão do seu alto custo versus o baixo benefício, aliado ao bom desempenho da linha de interligação”.
A diretoria da Aneel concluiu que “resta comprovada que a extinção da outorga da UTE Santana é de interesse da Administração Pública, uma vez que não há justificativas para manter o Empreendimento no parque gerador da região de Macapá após a interligação do estado ao SIN”.
Para completar, a subestação Macapá estava desde dezembro de 2019 com um transformador desativado. O que poderia ter sido consertado imediatamente acabou sendo adiado pela empresa responsável com o aval do Operador Nacional do Sistema e da Aneel, que estendeu o prazo para manutenção do equipamento até maio de 2021. Logo, a empresa de transmissão estava operando sem o transformador de redundância (o que reduz a confiabilidade e a segurança da operação). Qual o risco dessa decisão? Em caso de falha, pane ou inabilitação do transformador operacional, a população ficaria sem luz.
Especialistas afirmam, portanto, que a trágica situação ocorrida no Amapá é decorrente de uma série de malsucedidos, especialmente da ausência de dimensionamento real dos impactos decorrentes de falta de infraestrutura: há apenas uma subestação para conectar o estado ao Sistema Interligado Nacional; não há aproveitamento da geração interna do estado para atendimento ao Amapá; e houve desligamento das termelétricas que poderiam ser acionadas em caso de urgência.
Agrava-se a isso o fato de que a fiscalização da estrutura do sistema elétrico do país estaria sendo colocada em segundo plano por parte dos gestores da Aneel. De acordo com agentes do mercado, a atual diretoria da agência é a mais politizada dos últimos anos, o que estaria impedido que problemas estruturais fossem, de fato, solucionados.
No caso do Amapá, por exemplo, a Aneel optou por reduzir os custos para a União, mesmo com o risco de não ter uma opção de reserva em uma eventual urgência. A avaliação de especialistas é que houve uma precificação da Aneel e da ONS sobre o risco de apagão, mas as decisões de corte de custos estatais e política de redução de tarifa tomaram a frente da segurança energética do país.
O mesmo problema se repete em diversos estados da região Norte.
Política na Agência Reguladora?
Enquanto relatórios apontam uma série de erros e comparam o problema no Amapá com um acidente aéreo, quando diversos fatores levam ao desastre, o aspecto político levantado pelos agentes do mercado também precisam ser considerados. Segundo eles, no caso a Aneel, a atuação da diretoria tem sido cada vez mais regida pela política.
Apesar de ser um órgão de Estado, e não de governo, os diretores André Pepitone e Efrain Cruz não escondem sua proximidade com os agentes políticos nacionais e de seus estados. Em suas redes sociais, os gestores publicam regularmente agendas e viagens com o presidente Jair Bolsonaro e defendem pautas que não correspondem ao papel de uma agência reguladora – cujo objetivo é estudar o mercado e propor o melhor equilíbrio para todos os agentes.
Alguns exemplos podem ser vistos em declarações dos diretores à imprensa. Efrain Cruz, por exemplo, usou de seu cargo para anunciar, em seu estado de origem, a redução da tarifa de energia elétrica. “Com a Aneel acreditada, confiada pelo presidente Jair Bolsonaro, nós estamos agora entregando logo de saída na consulta pública uma redução de tarifa”.
Na ocasião, Pepitone também fez questão de atribuir a queda nas tarifas à gestão de Bolsonaro. “A MP 998, editada pelo presidente Bolsonaro, de fato traz uma ação decisiva sobre as tarifas da região Norte”, afirmou.
O que diz a Aneel
Sobre o apagão no Amapá e uma possível falta de fiscalização, a Aneel, procurada pela coluna, informou que está “investigando com todo o rigor as causas do blecaute no estado, para que esse tipo de ocorrência não volte a se repetir e também para punir os responsáveis”.
A agência reguladora informou ainda, por meio de sua assessoria, que o desligamento da térmica ocorreu a partir de constatação do operador do sistema de que não se justificaria a alternativa de elevar a geração na região por meio da usina, devido a seu alto custo versus baixo benefício
Sobre a possibilidade de esse apagão se repetir em outros estados, a Aneel explicou que o sistema elétrico é planejado para funcionar com segurança.
Questionada sobre os riscos de um novo apagão com retirada de um transformador de Roraima, o único estado do Brasil que não é conectado ao Sistema Interligado Nacional, a assessoria explica que “a transferência foi uma determinação do Gabinete de Crise criado pelo Ministérios de Minas e Energia. A Aneel, como executora da política pública, apenas isentou de anuência prévia o contrato entre a LMTE e a Eletronorte”.
Quanto à agenda política da diretoria da Aneel, que vem participando de eventos com membros do governo e com o próprio presidente Jair Bolsonaro, a assessoria afirmou que a agência “exerce plenamente sua autonomia, mas não trabalha como uma ilha. O regulador dialoga com todos os agentes do setor elétrico, de governo e da sociedade”.