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O aumento da intolerância religiosa

Teólogo Rodolfo Capler alerta para o crescimento de atos de discriminação de fé no mundo pós-pandemia e aponta possibilidades de enfrentamento do problema.

Por Rodolfo Capler
Atualizado em 1 ago 2021, 20h22 - Publicado em 1 ago 2021, 20h22

O debate em torno da tolerância religiosa nasce no século 17, no seio do Cristianismo, em meio as chamadas “Guerras de religião” da Europa, resultantes da eclosão da Reforma Prostestante e do efervescente processo de Contrarreforma. O primeiro grande tratado a abordar a liberdade religiosa foi a obra “Breve declaração do mistério da iniquidade” (1612), do advogado e cofundador da igreja Batista, Tomas Helwys. Defendendo a liberdade de culto e de consciência de cada indivíduo, Helwis escreve que “a religião do homem está entre Deus e ele: o rei não tem que responder por ela e nem pode o rei ser juiz entre Deus e o homem. Que haja, pois, heréticos, turcos ou judeus, ou outros mais, não cabe ao poder terreno puni-los de maneira nenhuma”. Como desdobramento de sua corajosa declaração (muito nobre para seu tempo), Helwis foi perseguido pelo Rei James I da Inglaterra e posteriormente, preso e morto em 1615, em Londres.

Ainda no século 17, mais precisamente no ano de 1685, o filósofo inglês John Locke escreveu a sua “Carta sobre a tolerância”. Resultante de seus constantes diálogos e de trocas epistolares com seu amigo Phillip van Limborch, Locke defendia, entre outras coisas, um apartamento radial entre política (encargo do rei) e religião (ofício dos sacerdotes) como solução para os morticínios causados pelos embates entre os cristãos. Assim, tanto a breve declaração de Helwis, quanto a carta de Locke – e o não menos importante “Tratado sobre a tolerância” (1763) de Voltaire -, são documentos importantes que introduziram de forma racional e estruturada o tema da tolerância religiosa no mundo do ocidente.

Pensadores como os sociólogos alemães Herbert Marcuse, Jürgen Habermas e o filósofo italiano Norberto Bobbio (para citar os mais proeminentes), com seus contributos ao tema, ajudaram a solidificar no século 20 a discussão e o entendimento políticos de qual deve ser a postura das sociedades modernas na busca de convivência pacífica entre as diferentes crenças. Nas palavras de Habermas, a democracia sanciona a prática da tolerância religiosa, pois “é a arte da convivência entre diferentes”.

De lá para cá, nos últimos 400 anos, os debates acerca da tolerância religiosa amadureceram filosoficamente, se espraiando para o campo jurídico. Após o final da Segunda Guerra Mundial, com a criação das Nações Unidas (ONU) e de sua eventual Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, que recomenda aos Estados signatários a livre manifestação de fé como um direito universal, inalienável e indivisível de toda pessoa humana, a tolerância religiosa se tornou um programa político das democracias liberais. No Brasil, quando da promulgação da Constituição Cidadã, em 1988, a liberdade religiosa tornou-se um direito fundamental consagrado pelo Estado, sendo a sua violação passível de crime. O art. 5º, inciso VI, do documento afirma que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

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Apesar de toda a construção de um pensamento pluralista e tolerante nos âmbitos da religião e da democracia, os crimes contra a liberdade religiosa vem aumentando nos últimos tempos – sobretudo na pandemia. Segundo relatório da ONG internacional Open Doors, em 2020, mais de 340 milhões de cristãos (contra 260 milhões em 2019), foram fortemente perseguidos no mundo. De discretas opressões diárias à violência mais extrema, as minorias cristãs em mais de 60 países são discriminadas por sua fé. Só na África subsaariana o número de cristãos mortos em 2020, aumentou 60%, passando de 2.983 para 4.761.

Os muçulmanos, normalmente vistos como perseguidores dos cristãos, também são vítimas de intolerância religiosa no ocidente. Após os atentados às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001 e as guerras do Afeganistão e do Iraque, os ataques aos muçulmanos passaram a ocorrer em larga escala. A islamofobia (termo que ganhou notoriedade após esse período), tornou-se prática cultural em países como Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra e França. Depois do início da pandemia do novo coronavírus os atos de violência religiosa contra muçulmanos cresceram na Europa. De acordo com o chefe do Observatório Nacional da Islamofobia da França, Abdallah Zekri, houve 235 ataques contra muçulmanos no país em 2020, ante 154 no ano anterior, um salto de 53%. A maioria dos ataques ocorreu nas regiões de Ile-de-France (grande Paris), Rhones-Alpes e Paca do país, disse Zekri em um comunicado, de acordo com declarações divulgadas pela Agência Anadolu (AA). Os ataques a mesquitas aumentaram 35% no mesmo ano, acrescentou Zekri.

No Brasil, a intolerância religiosa aumentou desde as eleições de 2018, tendo um forte agravamento na pandemia da Covid-19. Os adeptos das religiões de matriz africana (maiores vítimas no país) passaram a sofrer ataques mais acirrados nos últimos 16 meses, conforme certificações oficiais. Em todo o ano de 2020, foram registradas 245 denúncias (contra 211 no ano de 2018) de atos discriminatórios contra umbandistas, candomblecistas e outros praticantes de expressões de fé de matriz africana.

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Esse avultamento de casos de intolerância religiosa tem ocorrido no mundo por causa do colapso das democracias liberais e dos consequentes processos de bi-polarização política e politização da religião, que se adensaram durante a pandemia. Dominadas por um senso de descrença em relação ao futuro e emuladas por discursos de ódio (à esquerda e à direita do espectro político), as pessoas estão atacando umas as outras, inclusive por questões de prática de fé. Um exemplo disso foram os embates acirrados e muitas vezes violentos no Brasil, entre cristãos evangélicos em ocasião da abertura dos locais de cultos durante a vigência das políticas de restrição contra a Covid-19. Tanto os fiéis que se mostraram favoráveis ao funcionamento dos templos evangélicos, quanto os que se posicionaram contrários, se tornaram vítimas de violência digital.

Assim, diante desse plangente cenário, faz-se necessária a construção de possibilidades de desarticulação desse mal. Penso que um dos caminhos para a erradicação (ou minoramento), da intolerância religiosa nas sociedades ocidentais é a adoção do pluralismo religioso como um projeto político. Isso implica afirmar que mesmo com suas perceptíveis disparidades, como códigos de vestuário e arcanos pontos de doutrinas, todas as religiões são fundamentalmente iguais. Essa igualdade diz respeito a base comum que todas as religiões possuem (amor ao próximo e estímulo a prosperidade humana), e a estrutura democrática na qual a lei do lugar trate todos os membros de todas as religiões equanimemente e, em que o Estado se relacione com todas as comunidades religiosas com imparcialidade.

Essa é uma alternativa viável para que as diferenças religiosas e as superposições entre elas não precisem sempre colidir, mergulhando num lamaçal de violência e barbárie.

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* Rodolfo Capler Pesquisador, teólogo e escritor

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