Receber um presente envolve, ao mesmo tempo, um sinal de estima e consideração de quem o dá, e a gratidão de quem o recebe. Tradicionalmente, as relações diplomáticas entre países soberanos, quando do encontro de seus representantes, envolvem a troca de pequenas lembranças de seus países de origem, como forma de cordialidade e respeito a quem as recebe. Tais atos são realizados mediante protocolos cerimoniais, com registros fotográficos regados a apertos de mão e sorrisos recíprocos.
Não é demais recordar as consequências negativas do célebre caso dos diamantes ofertados pelo ditador Bokassa, da República Centro-Africana, em 1973, a Valery Giscard d’Estaing, outrora Presidente da França, uma das mais representativas democracias ocidentais, como um dos fatores a determinar seu insucesso nas eleições presidenciais francesas de 1981.
Por esse motivo, é de se estranhar o presente de extrema valia econômica entregue por um mensageiro oficial de um governo estrangeiro a um ministro de Estado, quando este se preparava para partir de uma missão oficial no Oriente Médio. Tal fato remete aos detalhes recentemente revelados acerca das joias, de famosa joalheria de luxo, endereçadas à então primeira-dama e ao Presidente, na anterior gestão.
O ministro de Minas e Energia da época, almirante Bento Albuquerque, ao receber os pacotes, os dividiu entre assessores, também militares, a fim de embarcá-los na viagem de volta ao Brasil. No entanto, fato a chamar a atenção foi o de não ter supostamente questionado ao preposto árabe o conteúdo dos embrulhos, sabendo que teria de os declarar tanto na saída do país de origem quanto na chegada, à Receita Federal. Por tal motivo, quando do desembarque, ao serem interpelados pelo órgão de fiscalização após a varredura pelo raio-x, não souberam declarar o que havia nas embalagens, apenas afirmando serem presentes endereçados à esposa do ex-mandatário.
Naquele momento foram descobertos os itens transportados: tratava-se de colar, relógio e outras peças avaliadas em mais de 16 milhões de reais. Obviamente, ao constatar a destinação privada, os bens haveriam de ser taxados, como os de todo cidadão que faz compras maiores de mil dólares no exterior. Os funcionários da aduana, servidores do Estado e não do governo de ocasião, não se deixaram intimidar pelos cargos dos fiscalizados. Não pago o tributo, as joias foram recolhidas pela Receita que as destinaria a futuro leilão, caso não houvesse o desembaraço por parte dos interessados.
Nesse instante iniciam-se os imbróglios jurídicos. Diversas intervenções foram feitas na tentativa de recuperar os itens. Documentados, vários ofícios foram expedidos, tanto do gabinete pessoal do Presidente da República quanto do gabinete do Ministro para o secretário especial da Receita Federal, reivindicando as joias. Justificavam tal demanda na necessidade de se verificar os itens para a correta destinação ao acervo pessoal ou ao acervo Público da Presidência, nos termos do Decreto 4.344/2002.
Em uma derradeira tentativa de recuperar os bens, mesmo já tendo sido declarado seu perdimento pela autoridade fazendária em julho de 2022, utiliza-se de um avião da FAB, três dias antes de Bolsonaro deixar o governo, deslocando-o até Guarulhos na esperança de recuperá-los para o inventário da gestão que se encerrava. Novamente, em boa hora, sem sucesso. Nesse meio tempo, as joias incluídas em futuro leilão da Receita foram retiradas pois passaram a constituir-se provas de eventuais ilícitos.
Em matéria criminal, algumas considerações são cabíveis com as informações até então reveladas. Se de fato as joias tinham destinação privada, o uso do aparato público com a intenção de reaver os bens pode indicar o delito de advocacia administrativa, previsto no Código penal com pena de detenção de um a três meses ou multa. O uso de avião oficial também apontaria para claro desvio de finalidade, a suspeitar para eventual prática de peculato. Além, é claro, do descaminho quanto ao não recolhimento do tributo.
De toda forma, é de se estranhar o recebimento de presente de tamanha monta econômica por agente público, ainda mais se comprovada sua destinação privada. Imperioso recordar a existência de legislação específica acerca de conflitos de interesses no âmbito da administração pública federal (Lei 12.813/2013 e Decreto 10.889/2021), sendo vedado o recebimento de presentes pessoais de alto valor econômico, quando oferecidos em razão de suas atribuições. Especificamente em relação às autoridades estrangeiras, o Código de Conduta da alta administração federal condiciona o recebimento, nos casos protocolares, à necessária reciprocidade.
Ao se tratar de bens destinados ao acervo público da Presidência, transparece a contradição entre a narrativa apresentada pelo então ministro de Minas e Energia e aquela apresentada posteriormente pelo ex-Presidente e seu entorno. No entanto, apurar os motivos de tal generosa doação e os esforços acirrados para reavê-la antes do encerramento do anterior mandato é tarefa da equipe responsável pelas investigações em andamento.
* Rodrigo Sánchez Rios é advogado criminalista, doutor em direito pela Universidade de Roma – Sapienza e professor de direito penal da PUC-PR