Último mês: Veja por apenas 4,00/mês

Matheus Leitão

Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Blog de notícias exclusivas e opinião nas áreas de política, direitos humanos e meio ambiente. Jornalista desde 2000, Matheus Leitão é vencedor de prêmios como Esso e Vladimir Herzog
Continua após publicidade

Brasil: uma sociedade de pés descalços ou a nação dos chinelos de dedos?

Pesquisadora lança, no Rio de Janeiro, o livro Barões de Tamancos: uma história social dos sapatos

Por Matheus Leitão Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 5 jul 2024, 15h14 - Publicado em 5 jul 2024, 13h51
  • Seguir materia Seguindo materia
  • Chanel chinelo
     (Divulgação Chanel/Divulgação)

    Nesta sexta-feira, 5, a pesquisadora Cecília Soares lança, no Rio de Janeiro, o livro Barões de Tamancos: uma história social dos sapatos. A coluna conversou com ela sobre relação entre os sapatos e a modernização do Brasil, a partir de sua investigação da produção e consumo de calçados no Rio. Cecília fará a noite de autógrafos neste 05 de julho de 2024, às 19h, na Livraria da Travessa de Botafogo (Rua Voluntários da Pátria, 97).

    O que a história dos sapatos conta sobre a transformação da sociedade brasileira? Somos uma sociedade de pés descalços ou o chinelo de dedos nos define melhor?

    Cecília Soares – Excelente pergunta. Acho que vale pensar numa sociedade ampla o suficiente pra lidar com um espectro de sapatos, mais do que um modelo só. Principalmente no século XIX, quando ainda se vivia num Brasil escravagista, que deixou muitas sequelas pesadas sem uma política de reparação, a divisão entre hierarquias ainda era muito rígida, sobretudo no espaço público. Nessa divisão casa/rua, uma das premissas era que as pessoas escravizadas andariam descalças, mas havia várias outras, como as mulheres de elite, das quais se esperava dominassem o espaço doméstico. Então, o portfólio envolvia desde botinas de couro até sapatos de tecidos finos, como a seda, passando por robustos tamancos (muito associados à comunidade portuguesa). Sair de casa com um par despojado de chinelos fala muito sobre como o brasileiro criou um conforto com referências populares, porque, durante o Império, havia muito mais a ideia de seguir um código de vestimenta à risca. Imaginem um aluno da Faculdade de Direito de terno, porém sem sapatos de verniz ou de couro? À época, seria uma figura bem iconoclasta.

    Ainda hoje é possível definir uma sociedade olhando para os pés ou o modo de consumo mudou e isso já não é mais um parâmetro?

    Cecília Soares – Certamente é possível entender muito sobre uma sociedade, sobre um contexto, sobre os seus perfis, através dos pés e de como eles são representados. Não só pela estética, pelas práticas culturais, mas também pela própria idéia de mobilidade. Embora as práticas de consumo, e os próprios modelos dos pares, mudem com o tempo, sempre podemos parar para analisar a relação daquele cenário com conforto, estética, locomoção, saúde, status, acesso a bens materiais… Talvez um dos exemplos mais imediatos sejam os chamados Pé de Lótus, a prática chinesa de amarrar os pés, que era considerada um símbolo de status e um referencial de beleza feminina. Mas a adesão crescente a roupas de ginástica e esporte, que a princípio foram feitas pra reforçar o conforto durante a mobilidade, indica um distanciamento da premissa de que o que é bonito se opõe ao conforto e à flexibilidade. Essa tendência ganhou até nome: “athleisure”, uma mescla de “athletic” e “leisure”, reforçando o despojamento e o lazer como nossos valores atuais. Agora, outro canal interessante é acompanhar as próprias publicidades, como de sapatarias e fábricas, ou de comunicados sobre saúde dos pés. O Jeca Tatu, personagem do Monteiro Lobato, se tornou um símbolo das dificuldades vividas no mundo rural, fora dos eixos das grandes capitais. Com isso, temos as pautas de saúde pública, de sanitarismo, que também trarão suas polêmicas no início do século XX – como no caso do Oswaldo Cruz e da revolta da Vacina. No lado mais comercial, as sapatarias e fábricas também participaram na própria lógica de consumo – por exemplo, deixando de lado a adesão a vendedores ambulantes e insistindo para ter pontos fixos de venda. Poder comprar sapatos em lojas é uma grande mudança para o ritmo da cidade, porque isso também significa que o cliente deverá ir até lá. Isso contribui muito para a emancipação feminina, que passa a poder percorrer as lojas, ou, como se dizia, “ver as modas”. Essas novas compras geram outras polêmicas, como o caso de vários maridos que se recusam a pagar as contas. E as próprias propagandas desencadeiam todo um imaginário sobre consumo, que também pode ser muito interessante.

    O que mudou do século XIX para cá? Tamanho dos saltos para mulheres, por exemplo? Como os sapatos evidenciavam a diferenciação entre classes sociais? Isso não permanece ocorrendo hoje em dia?

    Cecília Soares – Muita coisa mudou do século XIX pra cá, passando pelo tipo de trabalho, que era muito artesanal e recebeu uma quantidade notória de maquinário. Isso criou muitas alterações no mundo do trabalho e no mundo comercial, passando inclusive pela troca de matéria prima e o aumento da escala de pares produzidos e vendidos. Os sapatos do início do século podem ser verdadeiros bijus, com um uso recorrente de nada menos que seda! Um modelo muito difundido são as ballerines, que realmente são bem semelhantes às pontas de balé, só que com a sola bem plana. São modelos importados ou inspirados sobretudo na produção francesa, que se consagrou como um centro de moda já na época. Eu não achei saltos imensos (apesar de eles estarem mais presentes no fim do século), mas os pares masculinos também podiam ser muito decorados e coloridos. Já os tamancos podiam usar madeira e eram muito robustos, planejados para aguentar uma rotina pesada. Progressivamente, o couro se tornou a estrela de botas, botinas, e outros pares. Aí também cresce a sobriedade, com peso de cores como marrom e preto para os pares masculinos. A diferenciação entre classes começava pelo simples fato de estar calçado, entre outros por conta dessa premissa de que as pessoas escravizadas andariam descalças – embora, em vários contextos, essa ideia fosse contornada, fosse por quem teve a coragem de fugir ou se opor à opressão, ou pelo fato de que não se aderia tanto ao uso dos sapatos no mundo rural. Os pares também podiam ser muito caros. O cotidiano dos sapateiros também se alterou muito ao longo do século: eles se organizaram em vários países, incluindo o Brasil e os Estados Unidos, para negociar condições de trabalho, inclusive fazendo greve nas fábricas, que foram dominando os cenários a partir do fim do século. Finalmente, a escala de produção desencadeou várias competições acirradas entre países, desde a matéria prima até o produto acabado, muito marcadas por taxas agressivas e as organizações locais para reagir a essas mudanças. Em suma, cenários de muito dinamismo em relação a mudanças importantes sobre direitos civis, lazer, cotidiano e mundo do trabalho, entre outros.

    Eventualmente vemos que há uma apropriação por parte de camadas mais ricas de produtos que eram usados pelas camadas mais pobres. Um exemplo é o chinelo de dedo.  Essa apropriação também ocorreu no passado?

    Cecília Soares – Um viés de pesquisar elementos materiais é que temos uma quantidade assimétrica de registros vindos da elite, ou de classes altas, como um todo. Boa parte dos acervos de calçados existentes nos museus (brasileiros e internacionais) vem de doações, muitas vezes dos parentes, herdeiros ou pessoas que compraram as peças em leilão. Ou seja, as peças guardadas estão em bom estado até porque tiveram uma boa manutenção ao longo da sua vida, tanto ao serem usadas, como ao serem guardadas. É muito mais difícil termos acesso a pares que foram muito usados, desgastados, até serem descartados. Então, tanto pares de classes mais baixas, como pares entendidos como menos “preciosos”, num geral, acabam não chegando até nós. A própria ideia dos “barões de tamancos”, que dá nome ao livro, vem de uma citação que comenta como figuras nobres podiam ser muito mais despojadas na sua vida doméstica. Ou seja, mesmo numa sociedade muito voltada pra manutenção de uma hierarquia bem segmentada, temos nuances. Mas é muito mais difícil acharmos exemplares que contem essas histórias.

    O que mais os sapatos contam sobre a nossa sociedade?

    Cecília Soares – Num geral, quando pensamos em “história dos sapatos”, vem à nossa mente um tipo de linha do tempo, pensando em como os modelos mudam – saltos sobem, saltos descem, as cores mudam, vem uma tendência de moda, etc. Mas o que me inspirou a estudar os sapatos – embora, sim, muitos pares sejam lindos e muito particulares – foi a profunda relação com a mobilidade, tanto física, num cenário borbulhantes, como símbolo das mudanças da modernidade. Eles são um ponto de partida em que podemos pensar várias facetas de um prisma: as transformações de trabalho, do artesanal para o fabril; as organizações em irmandades, uniões, sindicatos e outros coletivos; as emancipações femininas; a mudança comercial, que passa a criar todo um ecossistema de lojas e fachadas… outra possibilidade bem legal é que muitos pares contam uma história de uma pessoa, resumem momentos importantes de uma vida. Sapatos de casamento, por exemplo, aparecem em muitos museus, pois as donas guardaram os pares e outros itens do dia da cerimônia. Um desafio que me surpreendeu, por outro lado, é que eu imaginei que seria fácil falar de sapatarias – afinal, elas se tornaram um item comum nas cidades. Mas essa história social das lojas é um desafio diferente. Quem sabe um próximo passo?

    Continua após a publicidade

    Noite de autógrafos:

    Sexta-feira, 05 de julho de 2024, 19h

    Livraria da Travessa – Botafogo

    Rua Voluntários da Pátria, 97.

    Publicidade

    Publicidade

    Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

    Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

    Veja e Vote.

    A síntese sempre atualizada de tudo que acontece nas Eleições 2024.

    OFERTA
    VEJA E VOTE

    Digital Veja e Vote
    Digital Veja e Vote

    Acesso ilimitado aos sites, apps, edições digitais e acervos de todas as marcas Abril

    1 Mês por 4,00

    Impressa + Digital
    Impressa + Digital

    Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (equivalente a 12,50 por revista)

    a partir de 49,90/mês

    *Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
    *Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.

    PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
    Fechar

    Não vá embora sem ler essa matéria!
    Assista um anúncio e leia grátis
    CLIQUE AQUI.