Até mesmo a ditadura militar acreditou na ciência no que diz respeito à gestão do Ministério da Saúde. Durante 21 anos em que garroteou a liberdade dos brasileiros, de 1964 a 1985, o regime nomeou médicos formados nas melhores escolas brasileiras para conduzir os trabalhos da pasta, que exige conhecimento técnico. Agora, enquanto o país passa pela pior pandemia dos últimos 100 anos, o ministério tem um militar no comando.
A demissão de dois ministros graduados em medicina – Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich – inegavelmente retirados por não concordarem com as ideias do presidente Jair Bolsonaro, colocou o Ministério da Saúde nas mãos do general Eduardo Pazuello, sem formação médica. Ele assumiu interinamente a pasta no dia 15 de maio, em meio ao caos na saúde, está há 46 dias no cargo e nomeou companheiros de farda para vários postos técnicos do órgão.
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Clique e AssineCom exceção de Vasco Tristão Leitão da Cunha, diplomata que esteve à frente do órgão por apenas oito dias, de 6 a 14 de abril de 1964, logo após o golpe, todos os demais ministros, até 1985, eram médicos. Raimundo de Moura Britto, que comandou o ministério de abril de 1964 a março de 1967, e Leonel Tavares Miranda de Albuquerque, que o sucedeu até outubro de 1969, eram formados por faculdades de medicina do Rio de Janeiro.
Leonel Tavares foi substituído por Francisco de Paula da Rocha Lagoa, que ficou no cargo até junho de 1972. Ele se graduou em uma escola de medicina de Niterói. O médico Mário Machado de Lemos, que permaneceu de 1972 até março de 1974, concluiu o curso de medicina em uma faculdade baiana.
Paulo de Almeida Machado, que ficou no cargo por cinco anos, de 1974 a março de 1979, formou-se na Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro). Mário Augusto Castro Lima, ministro da Saúde entre março de 1979 e outubro do mesmo ano, se graduou na Universidade Federal da Bahia. Já Waldyr Mendes Arcoverde, que comandou o posto de outubro de 1979 até 1985, era formado pela Universidade Federal do Paraná.
Mesmo colecionando gestões mais técnicas, adeptos da ciência e não do charlatanismo, há manchas graves na condução na política de saúde pública brasileira durante o regime ditatorial. Entre 1970 e 1977, ou seja, nas administrações de Francisco Lagoa e Paulo Machado, o Ministério da Saúde escondeu a existência de uma epidemia de meningite que crescia no interior do Brasil. A estratégia negacionista ajudou a manter a popularidade alta do regime, mas ceifou a vida de milhares de brasileiros, como mostrou a coluna recentemente.
Esse enredo de ocultar notícias ruins da população, ou de tentar maquiá-las para dourar a pílula, o governo Bolsonaro já seguiu. Ou pelo menos tentou. No início do mês, o site do Ministério da Saúde chegou a ficar fora do ar e, quando retornou, não exibia os dados completos sobre a pandemia do coronavírus. Uma recontagem esdrúxula tentava diminuir o número de mortos – iniciativa abandonada após pressão da imprensa e decisão da Justiça.
Apesar da estratégia de esconder dados ter sido usada pelo regime e copiada pelo atual governo, a ditadura acreditava na ciência. Além de confiar em médicos para o cargo de ministros da Saúde, a política de combate às doenças – a despeito do crime cometido na epidemia de meningite – era a científica, baseada no conhecimento técnico como forma de debelar as mazelas sanitárias.
Na democracia, já houve bons ministros que, como Pazuello, não eram médicos. José Serra é economista e sua gestão foi considerada boa, com avanços como a política de combate à Aids e a luta para quebrar patentes de remédios fundamentais.
O que torna ainda pior a escolha do atual governo é que ela foi posta em prática porque o presidente despreza as orientações da ciência, insiste em defender o uso da hidroxicloroquina, medicamento que ainda gera dúvidas sobre os benefícios em relação ao coronavírus, e descumpre repetidamente orientações de autoridades sanitárias internacionais que pedem o isolamento.
Não é de se espantar, portanto, a avaliação de um ex-presidente do regime ditatorial sobre Bolsonaro. Em uma entrevista dada em 1993, na qual finalmente defendeu o afastamento das Forças Armadas da política, Ernesto Geisel, quarto presidente da ditadura militar, afirmou que Jair Bolsonaro era um mau militar.
“Presentemente, o que há de militares no Congresso? Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar. Mas o que há de militar no Congresso? Acho que não há mais ninguém”, disse Geisel na ocasião.
Por isso tudo, quando um general é posto no ministério mais importante para a luta contra o coronavírus e o seu chefe passa boa parte do tempo conspirando contra os ensinamentos da medicina, temos de dar razão ao Geisel: Bolsonaro, entre outras coisas, também sempre foi um péssimo militar. A ditadura sufocou a liberdade dos brasileiros e é indefensável. Até por isso não se esperava que, em alguns momentos, o governo Bolsonaro superasse em erros o odioso regime que gostaria de imitar.