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Matheus Leitão

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Blog de notícias exclusivas e opinião nas áreas de política, direitos humanos e meio ambiente. Jornalista desde 2000, Matheus Leitão é vencedor de prêmios como Esso e Vladimir Herzog
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A violência nas democracias constitucionais

Ensaísta Davi Lago afirma que, com o vácuo de lideranças públicas conciliadoras, o debate público brasileiro ficou refém de violências gratuitas

Por Davi Lago
Atualizado em 19 jul 2020, 10h20 - Publicado em 19 jul 2020, 07h33

Violência implica um algoz e uma vítima, envolve noções de dor, medo e agressão, simbólica ou física. A violência é difícil de definir, visto não existir em si mesma, mas sempre em relações contextuais. Deste modo, a tipologia da violência sistematizada por Xavier Crettiez ajuda na compreensão didática do tema. Ele destaca três formas comuns de violência nas democracias constitucionais: (i) a violência estatal, que está no cerne das próprias instituições políticas modernas; (ii) a violência contra a ordem estatal legitimamente constituída, que envolve todas as formas violentas de contestação política; (iii) e as violências interindividuais, que incluem crimes e atentados que perturbam a paz social e a ordem pública. Nos últimos anos, infelizmente, o Brasil vivencia um aumento dos índices de violência nestas três formas.

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Façamos uma análise inversa. Em primeiro lugar, os dados da violência interindividual não são novidade para nenhum brasileiro ou brasileira: nosso país apresenta uma das taxas mais altas de assassinatos do mundo, superior a 30 a cada 100 mil habitantes segundo o Atlas da Violência do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) vinculado ao Ministério da Economia. O Brasil só perde para Belize, Honduras, Colômbia e El Salvador. As denúncias de violência doméstica dispararam nestes meses de distanciamento social, e assim por diante. Em segundo lugar, a insatisfação popular generalizada com a classe política criou no Brasil um ambiente de aguda polarização que resultou em violência de contestação política.  As manifestações políticas deste período mobilizaram códigos que aludem à violência e, em muitos casos, foram violentas concretamente. Como disse Eugênio Bucci, “no rumor dos protestos, a violência é linguagem”. Os ambientes virtuais também não foram poupados, e se tornaram palcos de linchamentos, difamações, calúnias e todo tipo de agressividade. O politólogo Leonardo Avritzer afirmou que neste período, “o desrespeito, seja à soberania eleitoral e às dimensões públicas do processo eleitoral, seja à estrutura do direito, aponta para uma inflexão no pêndulo democrático”. Segundo Avritzer, o cidadão brasileiro passou a ser caracterizado pelo ódio cibernético. Em terceiro lugar, aumentaram as denúncias de abuso policial e recorrentes tragédias em operações desorganizadas (que vitimaram menores como Ágatha e João Pedro), entre outras formas de violência estatal ilegítima.

Com o vácuo de lideranças públicas conciliadoras, dotadas de autoridade ética, capacidade dialogal e visão de conjunto, o debate público brasileiro ficou refém de violências gratuitas e vulnerável a toda sorte de discurso estúpido em louvor da violência. Hoje, é necessário reafirmar o óbvio: as três frentes de violência não se resolvem simploriamente com mais violência. Não se resolvem conflitos sociais complexos, nem se desenvolve o bem-estar geral ou se mantém a ordem pública com pancadas. Por outro lado, a violência sistemática contra a ordem pública legítima não colabora com o efetivo progresso social como demonstra com facilidade a história recente. Do culto ao terror virtuoso de Robespierre ao terrorismo de motivação religiosa, passando pelos delírios destrutivos nazistas, fascistas e stalinistas, a instrumentalização da violência para supostas “libertações políticas” só trouxe mais dor e sofrimento à humanidade.

Não podemos ignorar postulados políticos basilares. O monopólio estatal da violência legítima é um pressuposto das sociedades democráticas contemporâneas. Teorizada sobretudo a partir de Thomas Hobbes, a violência estatal funda-se em termos contratuais. A sociedade se estrutura a partir da rejeição intelectual e prática de uma violência física de todos contra todos, obstáculo à concórdia e ao progresso social. Segundo Hobbes, a rivalidade entre as pessoas, a desconfiança mútua e a busca de benefícios e glória seriam as três causas dessa violência primitiva que apenas o Estado – o Leviatã – poderia controlar. Todas as doutrinas contratualistas teriam o seu momento hobbesiano que alicerça a política como oposição à violência. Na clássica definição de Max Weber, o Estado reivindica o “monopólio da violência física legítima”.

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Mas o Estado é uma ficção jurídica: ele é incapaz de executar qualquer violência, só pode fazê-lo através de seus órgãos e atores autorizados. Além disso, os dirigentes de regimes autoritários se caracterizam por aparelhar a violência estatal a favor de si próprios. Daí o valor dos preceitos democráticos: na lógica do Estado democrático a violência estatal legítima executada por agentes autorizados está submetida a um conjunto de restrições jurídicas que modulam sua manifestação. A democracia é o regime do poder visível, organizado por normas e procedimentos escritos, conhecidos e fiscalizados por todos os cidadãos. Não há, portanto, espaço nem para crimes por qualquer cidadão ou cidadã, como não há espaço para violências ilegítimas, arbitrárias, pelos agentes estatais como, por exemplo, desproporção na reação policial e abuso de poder, situações onde a autoridade desvia seu poder do interesse público. Nas democracias constitucionais, a sociedade pacificada é uma obra conjunta da comunidade dos cidadãos em liberdade.

A escalada da violência brasileira exige consciência cívica da parte de todos, superação de querelas fúteis, bem como lideranças e agentes públicos à altura de suas responsabilidades constitucionais.

* Davi Lago é pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo

 

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