A desumanidade de Eduardo Bolsonaro não nos deixa prosseguir, virar a página para os muitos debates que o país precisa travar à medida que seu pai, Jair, continua a atacar as instituições democráticas brasileiras.
Agora, após desdenhar da tortura sofrida por uma mulher aos 19 anos, grávida e presa em um quartel do Exército brasileiro, o deputado afirmou o seguinte: “sobre a questão da cobra existe apenas a palavra da Miriam Leitão dizendo que ocorreu”.
Mentira.
Trata-se de mais uma covardia do filho do presidente nas redes sociais, que ele usa preferencialmente para propagar o ódio. E, com isso, inflamar pessoas que, como ele, têm também visões nada democráticas, mais que isso, desumanas.
É a tentativa agora de colocar em dúvida se a tortura existiu, como se fosse preciso.
São inúmeras provas de que centenas de pessoas, neste caso especificamente Miriam Leitão, foram vítimas de tortura na ditadura.
Vamos a elas.
Em 2012, os repórteres de O Globo Chico Otavio, Juliana Dal Piva e Marcelo Remígio foram os responsáveis por descobrir a verdadeira identidade do torturador Dr. Pablo: o coronel Paulo Malhães.
O próprio Paulo Malhães, em entrevista aos repórteres, confirmou que usava cobras e jacarés em interrogatórios.
Sua imagem de torturador, no entanto, seria amplamente reproduzida dois anos depois, em 2014, quando ele novamente admitiu participação em torturas, dessa vez perante a Comissão Nacional da Verdade.
Menos de trinta dias após o depoimento ele foi morto.
Ao envelhecer, Paulo Malhães mantivera os cabelos fartos dos quais minha mãe e dezenas de outros presos no Espírito Santo, onde eles foram encarcerados e torturados pela ditadura, se recordavam quando eu os entrevistei para o livro e o documentário Em Nome dos Pais.
Ou seja, ele foi reconhecido como torturador por vários dos presos políticos que foram encarcerados com Miriam Leitão, e não só por ela.
Conto no livro Em Nome dos Pais que uma fonte da alta patente do Exército me informou que havia apenas um militar com o codinome Dr. Pablo entre os que atuaram na repressão. Ele também era o único a usar animais nos interrogatórios, sua terrível marca registrada, digamos assim.
Foi ele, Paulo Malhães, que colocou a cobra na cela de Miriam Leitão, minha mãe.
Todavia, como sabia que para muitos essas evidências não eram suficientes, fiz questão de buscar mais provas, de preferência, documentais, para saber o que ele, Malhães, estava fazendo naquele final de 1972 quando ela foi presa. Por isso, procurei sua Folha de Alterações.
Este é o nome dado a um precioso documento que registra, semestral e detalhadamente, as atividades de um militar. Eduardo Bolsonaro conhece o valor e a importância do documento, mas finge não saber de sua existência em vídeo publicado nas redes sociais.
Depois de muitos meses de insistência, uma fonte militar me entregou a Folha de Alterações de Paulo Malhães.
Na página 65 das 143 do documento, encontrei a resposta à pergunta sobre por onde ele andava no segundo semestre de 1972.
O Exército registra que, entre 4 de outubro e 31 de dezembro de 1972, Malhães desempenhou funções “na 2a Seção do I Exército” e estava “à disposição do Doi/I Exército”.
O Espírito Santo, onde Miriam foi presa, está dentro da área do “I Exército”, e o que os superiores do então capitão Malhães registraram é que ele trabalhou por dois meses e vinte e nove dias na 2a Seção e no Doi, o aparato mais repressivo da ditadura.
Exatamente nesse período Miriam Leitão e outros estudantes da Universidade Federal do Espírito Santo foram presos e torturados na 2ª Seção de um batalhão do I Exército.
Só o paciente tempo de investigação me levou a essa prova documental que confirmou que, de fato, Malhães atuou no 38º batalhão de Infantaria, em Vila Velha, na época em que o grupo de Vitória esteve preso.
Para completar, o ex-delegado da Polícia Civil do Espírito Santo e ex-agente do Serviço Nacional de Informações (SNI) Cláudio Guerra confirmou, também em entrevista ao documentário, que Paulo Malhães estava em Vitória na primeira semana de dezembro de 1972 com uma jiboia que havia sido trazida do Rio de Janeiro numa caixa de isopor. Guerra atuava na repressão do Espírito Santo.
Ângela Milanez, presa um dia antes de minha mãe, também foi torturada com a mesma cobra, e contou, em entrevista a mim, sobre como foi enfrentar o animal.
O filho do presidente também pode consultar os autos da Justiça Militar, a mesma que inocentou Miriam Leitão. Nos documentos, existe o depoimento dela, dado em 1973, na qual ela relata a tortura com a cobra.
Para o Ministério Público, que o deputado tanto defendeu contra seus inimigos políticos, é a prova mais cabal de que houve tortura no regime, já que não fazia sentido denunciar um crime em plena ditadura, quando o depoente – e foram mais de 20 mil desses depoimentos – poderia sofrer novas agruras.
Tentar desmoralizar a vítima da tortura é nefasto. Mas também é um clássico das pessoas que não têm sentimentos humanos.
Como se pode ver, leitor, são inúmeras provas. Mas Eduardo, além de fazer chacota da tortura sofrida por ela, por elas, por vários brasileiros e brasileiras durante o regime militar, mais uma vez mente sobre fatos.
Certamente preocupado com a proporção de sua perversa fala, incluindo os pedidos de cassação de seu mandato, Eduardo Bolsonaro gravou esse vídeo em que verbaliza essa nova mentira – “sobre a questão da cobra existe apenas a palavra de Miriam Leitão” – e outras fake news sobre a ditadura militar.
No vídeo, ele parece baixar o tom, tentando dar fim ao caso, mas as instituições brasileiras não deveriam deixá-lo sair impune.
Apologia à tortura é crime.
Em qualquer país sério defender um regime ditatorial e seus torturadores levaria à perda de mandato e à responsabilização criminal.
O Brasil tem escolhido o pior destino.