Vírus, ignorância e preconceito
A pandemia cria ambiente para a proliferação do racismo, do medo do contágio via pobreza e da caridade inócua para os miseráveis
Nada como uma epidemia para fazer aflorar o que há de pior nos seres humanos. Se você é usuário do WhatsApp, como 99% dos portadores de smartphones no Brasil, recebeu recentemente, ou está prestes a receber, em pelo menos um dos grupos dos quais faz parte, sequências de vídeos que mostram hábitos exóticos de alimentação de habitantes de diversas regiões da China. Menos do que curiosidade, o que essa campanha procura incentivar é o preconceito que nasce quase naturalmente das diferenças que não compreendemos – embora sejamos consumidores de coisas como roquefort, scargot, ceviche, tripas, formigas e milhões de animais invisíveis.
Logo depois da circulação dos vídeos, em praticamente todos os grupos se estabelece a troca de mensagens de cunho racista, contra chineses em particular e orientais de modo geral. Donald Trump – que chama COVID-19 de “vírus chinês” – é mestre em explorar a vilania e a indignidade embutidas nessas manifestações cuja única relevância é determinar o quanto podemos ser ignorantes, sáfios e estúpidos, combinadamente.
Trump, cuja plataforma visa a manter os americanos como os maiores consumidores e poluidores do planeta, mandando às favas as consequências, tem como objetivo aproveitar-se do lado discriminador e ignóbil de parte do eleitorado de seu país para fortalecer-se politicamente. Quer ser um herói que denuncia e combate o perigo alienígena, protegendo os cidadãos “inocentes” antes vitimados pelo desemprego e agora pelo vírus dos chineses. Do ponto de vista do planeta, make America great again pode ser traduzido como “os outros que se lasquem”.
Nas nossas elite e classe média, onde o preconceito contra chineses e também coreanos aflora fácil num momento como este, trata-se mesmo de obscurantismo recheado com certo complexo de inferioridade. Desprezam o desconhecido e misterioso, deixando vazar a preguiça ancestral de buscar esclarecimento na mesma medida em que remoem a inveja pelo progresso tecnológico que sopra da Ásia sobre os nossos cartórios, a nossa herança patrimonialista de privilégios raciais e o mais insólito orgulho da própria ignorância.
Como se sustenta aqui um processo de desigualdade descomunal e baseado na negação institucional do direito de oportunidades equânimes, temem, esses whatsappistas (não por acaso usando camisas amarelas), que os exóticos estão prestes a tirá-los da janelinha do ônibus da história, como os ameaçam de vez em quando também os miseráveis que rondam as grades dos condomínios. É a janelinha do último ônibus, provavelmente, mas ônibus ainda assim.
Vêem a vida em branco e preto e, na visão deles, o amarelo é um dos tons de preto, o vermelho é um tom de preto, a justiça social é preta. E todos os que discordarem deles são pretos também. Essa Ku Klux Klan está prestes, agora, no meio de uma pandemia, a transferir novamente a conta para os que têm menor poder aquisitivo e, quase por consequência, legislativo. Quando, “pagando salário!”, dão folga para as empregadas, que vão se virar contra o vírus na aglomeração indigna da favela, não estão pensando na segurança da funcionária, mas sim que ela não traga a praga lá do transporte público para dentro de suas casas.
Quando se fala em soltar presos idosos e condenados a penas menores para evitar a explosão das contaminações e mortes no sistema penitenciário, trocam mensagens defendendo exatamente o oposto. Lamentam o fechamento da Disneylândia e não estão nem aí para como vai se virar o vendedor de panos de prato dos semáforos. Seus olhos estão nas notícias, mas o coração pulsa mesmo no ritmo da bolsa de valores, decidindo fazer posições em dólar ou ouro para nunca mais cair no conto da bolha, aplicado pelos mais espertos.
É bastante significativo que o pacote emergencial anunciado por Paulo Guedes na quarta-feira, dia 18, tenha reservado R$ 200 reais para cada trabalhador informal que possa ser identificado, por três meses. A expectativa é de que isso seja suficiente para manter quieto o contingente de brasileiros aos quais se nega trabalho digno até que possam voltar às atividades despidas de perspectiva que exercem regularmente.
Medida com jeitão de caridade, a ideia parece pífia quando comparada ao esforço para socorrer companhias aéreas. Afinal, quando tudo passar, o pessoal do preconceito via WhatsApp precisa voltar a comprar os produtos chineses e visitar a Disney. Mas o auxílio parece ainda menos relevante quando se procuram os sacrifícios que estão sendo solicitados, neste momento, aos bancos e aos investidores que acumulam lucros astronômicos e crescentes e que, claramente, na crise das bolsas, estão com os tickets que garantem ainda mais ganhos, contra aqueles menos espertos e contra todos.
Sabe-se que dinheiro não evapora. Só muda de bolso e o bolso em que foi parar pode ser rastreado. Não seria este um bom momento para rever, em caráter extraordinário, a política de tributação dos negócios que nunca perdem nada?
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