PSOL e Rede mostram que problema na base aliada de Lula não é só o Centrão
Mesmo com ministérios e fazendo parte da base, partidos votaram contra arcabouço e geram desconfiança sobre seu apoio a reformas caras ao governo
Fundado por políticos dissidentes e expulsos do PT em 2004, o PSOL sempre manteve alguma distância da maior sigla de esquerda do país e, desde então, lançou candidatos próprios à Presidência nas eleições de 2006 a 2018. Em 2017, o partido e Luiz Inácio Lula da Silva trocaram farpas publicamente: o petista declarou que o PSOL tinha “frescura com o PT” e a legenda rebateu, enumerando treze de suas “frescuras”, entre as quais “não aceitar propina da Odebrecht”. Depois da chegada da direita ao Palácio do Planalto, os psolistas decidiram em 2022, pela primeira vez, abrir mão de um voo solo para apoiar Lula. Mesmo tendo Jair Bolsonaro como adversário, a adesão ao petista foi apertada: 35 votos a 25 no diretório.
Vencida a eleição, a sigla decidiu integrar a base aliada, ainda que com divisões internas, assim como a Rede Sustentabilidade, com a qual os psolistas formam uma federação. No primeiro escalão do governo, o PSOL ficou com o ministério dos Povos Indígenas, ocupado por Sônia Guajajara, e a Rede, com a pasta Meio Ambiente, sob Marina Silva. Parecia o cenário perfeito para iniciar uma grande lua-de-mel de congraçamento inédito entre a esquerda, mas há ali divergências importantes, sobretudo nos temas econômicos. No Congresso, os dois partidos somam uma bancada modesta, 14 deputados, mas é uma força relevante para um governo ainda sem uma base sólida.
No aquecimento desse jogo, Rede e PSOL fizeram boas tabelinhas com o Planalto, a exemplo do apoio à PEC da Transição, antes mesmo da posse do presidente. Apoiaram também o governo em votações importantes, como as análises da MP do Saneamento e do marco temporal para demarcações de terras indígenas — das quais Lula saiu derrotado com votos de “aliados”, como União Brasil, PSD e MDB. Quando estava em jogo um dos itens fundamentais da pauta econômica do governo, no entanto, gol contra: ambas as siglas votaram contra a proposta do arcabouço fiscal apresentada pelo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad. O episódio escancarou o desalinhamento, gerando desconfianças sobre o apoio às reformas por vir.
Principal pauta do governo até o momento, o marco fiscal foi aprovado por ampla margem na Câmara, 372 a 108, após grande esforço de articulação política que mobilizou, além de Haddad, os ministros Rui Costa (Casa Civil) e Alexandre Padilha (Relações Institucionais), o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e lideranças partidárias. Apesar do empenho do Planalto pelo texto, relatado pelo deputado Cláudio Cajado (PP-BA), o PSOL e a Rede entenderam que o arcabouço fiscal vai engessar o governo e prejudicar investimentos públicos. As duas siglas votaram em unanimidade contra a urgência à tramitação do texto e também contra o mérito — uma rejeição comparável à do Novo, que faz oposição sistemática a Lula. Embora tenha alas críticas ao texto, o PT entregou 100% de seus votos favoráveis e até o PL, de Bolsonaro, teve um terço de sua bancada a favor da proposta (veja quadro abaixo).
“Ser aliado não significa votar tudo conforme orientação do governo, até porque a proposta votada desfigurou bastante a proposta do governo. No fim do dia, tratava-se de uma proposta do Centrão, com o qual não tínhamos qualquer compromisso”, disse a VEJA o presidente do PSOL, Juliano Medeiros.
Diante da oposição sem meio-termo ao arcabouço, políticos da base aliada na Câmara avaliam que os dois partidos podem repetir a infidelidade quando entrar em pauta a reforma tributária. O tema também é prioritário tanto a Haddad quanto a Lira. Enquanto o ministro da Fazenda afirmou a VEJA que a reforma é o “próximo passo” e trará “um choque de produtividade na economia brasileira”, o capitão do Centrão já disse que gostaria de ver a reforma aprovada até o recesso parlamentar, em julho.
O PSOL historicamente defende, além de um sistema tributário mais simples, pontos como taxação de grandes fortunas, heranças, lucros e dividendos. Fora a simplificação, ponto pacífico diante do emaranhado de tributos do Brasil, os demais são temas sensíveis, sobretudo em um cenário no qual tem se falado em levar à frente uma “reforma possível”, ou seja, um texto palatável para ir a voto e ser aprovado. Lira costuma dizer que o Congresso é composto, em sua maioria, por deputados liberais na economia, reformistas e conservadores – o oposto do perfil de PSOL e Rede. “O debate [na reforma tributária] será em torno do alcance, isto é, se vamos falar só de simplificação ou se também vamos tratar de progressividade [cobrar mais impostos de quem tem mais recursos]. Nós do PSOL defenderemos que tenhamos ambas as coisas”, diz o presidente do partido.
A canelada dos dois partidos no arcabouço fiscal veio pouco antes de outro lance de desconforto na aliança com Lula. Na última semana, após a aprovação do relatório do Congresso sobre a medida provisória que estrutura o governo, desidratando os ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas, a ministra Sônia Guajajara apontou publicamente “certa frustração” com Lula, em razão da falta de empenho para evitar o esvaziamento das pastas. O ministério de Guajajara perdeu a função de demarcação de terras indígenas, enquanto o de Marina, a gestão do Cadastro Ambiental Rural e a Agência Nacional de Águas. Com o risco de que a MP perdesse validade, o que retomaria a configuração da gestão Bolsonaro, limando 14 ministérios, o ministro da articulação política, Alexandre Padilha, defendeu que o texto fosse aprovado tal como havia saído da comissão mista, o que de fato ocorreu — com o resignado apoio de PSOL e Rede na votação.
Diante dos descompassos recentes, começaram a surgir nos bastidores, entre petistas, questionamentos à manutenção do apoio do PT a Guilherme Boulos, líder da bancada da federação na Câmara, na disputa à prefeitura de São Paulo no próximo ano. Fechado em 2022 sob as bênçãos de Lula, o acordo envolveu a retirada da candidatura de Boulos ao governo paulista em benefício de Haddad. “O mais importante é a ideia do programa que Boulos pretende liderar. Esperamos que seja um programa de centro-esquerda. Um programa de extrema-esquerda nos torna um pouco distantes”, diz o presidente do PT paulista e deputado federal, Kiko Celeguim. Tanto a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, quanto Juliano Medeiros, do PSOL, ponderam não haver relação entre os posicionamentos no Congresso e a eleição paulistana. Uma ala do PT defende que Boulos, líder das pesquisas, se filie ao partido, o que correligionários do parlamentar rechaçam prontamente, por motivos óbvios.