As descrições dos diversos episódios que caracterizam o planejamento e até a execução de um plano para subverter o resultado da eleição presidencial de 2022, e os indícios de que o então presidente sabia, não puniu e deu anuência às movimentações são os principais pontos que podem comprometer Jair Bolsonaro em uma eventual denúncia por golpe de Estado e abolição violenta do Estado democrático de Direito, segundo especialistas ouvidos por VEJA. A avaliação é a de que os atos preparatórios já são suficientes para caracterizar os dois crimes, dos três apontados no relatório em que a Polícia Federal pede o indiciamento de 37 pessoas (o terceiro é organização criminosa).
O documento enviado ao Supremo Tribunal Federal nesta quinta-feira, 21, está sob sigilo, mas, com base no relatório da Operação Contragolpe, que resultou na prisão de cinco investigados por tentativa de golpe, é possível identificar a dinâmica e o contexto da investigação da Polícia Federal. O relatório mostra diversos momentos em que Bolsonaro teve ciência e efetivamente participou da trama golpista.
Segundo a PF, Bolsonaro analisou e fez alterações em uma minuta que previa a instauração de um Estado de Defesa no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) após o resultado da eleição em que foi derrotado, participou de reuniões em que foram discutidas medidas para manutenção do grupo no poder, tinha ciência do monitoramento do ministro do STF Alexandre de Moraes, tinha contato direto com militares que planejaram o plano Punhal Verde e Amarelo, de execução do golpe de Estado e que previa a execução do então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e de seu vice, Geraldo Alckmin, além de Moraes. Além disso, enquanto seus aliados articulavam um plano para um golpe de Estado no país, Bolsonaro não reconheceu publicamente o resultado das urnas.
O professor titular de direito Penal da USP Sérgio Salomão Shecaira lembra que em um inquérito são analisados não só os fatos, mas também o contexto em que eles são inseridos. Ele observa que a descrição dos fatos apontados pela Polícia Federal são muito detalhados em relação à conduta e atitudes dos principais aliados e auxiliares de Bolsonaro, como ministros e militares. “E os indícios contra o ex-presidente são muito fortes”, disse.
“Existem dezenas de provas de que tudo passou por ele”, resume o criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, que já defendeu o ex-presidente Fernando Collor no STF. Ele cita como exemplo os depoimentos já colhidos na investigação dos comandantes do Exército e da Aeronáutica da gestão Bolsonaro, que apontam que o ex-presidente tinha ciência das movimentações. O próprio plano foi impresso no Palácio do Planalto, por incrível que isso possa parecer”, disse.
Para o advogado criminalista Roberto Podval, se ficar comprovado que Bolsonaro participou de reuniões e tinha ciência de uma articulação para se dar um golpe de Estado, ele pode ser implicado. “A não ser que se prove que ele foi contra e tomou medidas para impedir e punir quem estava articulando, porque ele tinha obrigação de impedir aquilo”, disse.
Os especialistas contestam, por exemplo, o argumento usado pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho mais velho do ex-presidente, nesta semana, após a prisão de quatro envolvidos na trama golpista. Segundo o senador, pensar em matar alguém, por mais repugnante que seja, não é crime. A avaliação de criminalistas é a de de que o raciocínio não se aplica aos crimes atribuídos a Bolsonaro pela Polícia Federal.
Podval diferencia os crimes materiais, como o de homicídio, dos formais, em que um golpe de Estado está inserido. Segundo ele, no primeiro grupo há a necessidade de o ato ser efetivamente tomado para ser caracterizado. Ou seja, uma pessoa precisa apontar e disparar uma arma contra alguém para a tentativa de homicídio ser caracterizada. Nesse caso, os atos preparatórios, como comprar arma, munição ou treinar tiro, não são criminalizados.
Nos casos dos crimes formais, a preparação já é o crime. “O planejamento já é o crime. É como a pessoa dirigir bêbado. Mesmo se não causar um acidente é crime”, disse o criminalista. Por isso, avalia o advogado, os militares envolvidos no monitoramento, cerco e início de uma operação, que posteriormente foi abortada, para matar Alexandre de Moraes não deverão responder por tentativa de homicídio, mas poderão ser enquadrados pelos atos antidemocráticos.