O filósofo e ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, Roberto Mangabeira Unger, criticou o governo Lula, defendeu que ele apoie um sucessor em 2026 e diz que já tentou marcar uma reunião com o presidente várias vezes, mas não teve resposta.
Mangabeira ocupou o cargo no segundo mandato de Lula e foi escolhido para coordenar o Plano Amazônia Sustentável (PAS) — a decisão do presidente foi um dos motivos para a renúncia da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Ele deixou a secretaria em 2009, mas voltou em 2015, após a reeleição de Dilma Rousseff. Hoje, aos 77 anos, mora nos Estados Unidos e dá aulas na Universidade de Harvard.
O ex-ministro, que é formado em direito, foi alvo de críticas no início deste ano por se reunir com Jair Bolsonaro. A conversa aconteceu no mesmo período em que vieram à tona indícios da participação do mandatário em uma tentativa de golpe de Estado. Na ocasião, Mangabeira cogitou apresentar habeas corpus preventivo para impedir que o ex-presidente viesse a ser preso, mas desistiu.
O professor, que está de passagem pelo Brasil, concedeu entrevista a VEJA nesta quinta-feira, 20, em São Paulo. Leia abaixo:
O que está achando do governo Lula 3? O problema fundamental do Brasil não é a desigualdade, é a mediocridade. Só superaremos a desigualdade em meio a uma onda para superar a mediocridade. De 1950 a 1980 o Brasil era um dos países que cresciam mais rapidamente no mundo. Depois disso, caímos no marasmo. Essa é a verdadeira tragédia do Brasil. É um caldeirão de energia humana, de criatividade empreendedora e cultural, mas estamos rodando no vazio. Temos tido governos supostamente de esquerda e de direita e supostamente antagônicos na sua orientação que, na verdade, seguem o mesmo projeto, que exprime a união do financismo fiscalista e do pobrismo assistencialista. Então, os governos de Lula e o governo de Bolsonaro seguiram basicamente o mesmo projeto, com dois temas. O primeiro tema era ganhar a confiança dos mercados financeiros, na suposição equivocada de que essa confiança traria o investimento estrangeiro e doméstico. E o investimento, por sua vez, nos devolveria o crescimento. Isso nunca funcionou em qualquer país do mundo. O segundo tema é o pobrismo, a distribuição das sobras às massas pobres do Brasil.
As críticas a respeito da condução da economia são justas? Nós precisamos, sim, de equilíbrio fiscal, mas não é para ganhar confiança nos mercados financeiros. É para a razão oposta, para que o Brasil não tenha que ficar de joelhos diante dos mercados financeiros e possa ousar na construção de um projeto rebelde de desenvolvimento nacional. Bolsonaro chegou e dobrou a aposta de Lula nos programas de transferência. E quem é então que paga as contas do consumo urbano? A agricultura, a pecuária e a mineração. Nós estamos regredindo ao século XIX. O setor primário, que emprega uma porção minúscula da força de trabalho do Brasil, paga as contas. Esse projeto que eu descrevi, o casamento do financismo com o pobrismo, substitui o projeto produtivista e capacitador que precisaremos ter. Então, digo o seguinte, nosso problema não é a falta de uma terceira via entre as opções polarizadas que aparecem na superfície. Nosso problema é a falta de uma segunda via. Apesar da polarização política dessas duas tribos, elas, no fundo, estão convergindo para o mesmo não projeto, que não desenvolve o país. Nós precisaríamos oferecer uma alternativa a esse projeto.
E qual seria essa alternativa? Primeiro, fazer essa travessia do Brasil, da antiga vanguarda para a nova, elevando a produtividade. Usar o Senac, os bancos públicos de desenvolvimento, até a Embrapa. O Brasil é o único estado do mundo que tem um tal conjunto de instrumentos. O que nós não temos é o projeto. Esse projeto produtivista teria que ser traduzido nas realidades de cada uma das grandes regiões do país. Por exemplo, na Amazônia, nós falamos de desenvolvimento sustentável. Mas o que é o desenvolvimento sustentável? Se não for apenas um extrativismo artesanal, sem escala, sem tecnologia e, portanto, sem futuro, tem que ser uma variante da economia do conhecimento. Ou é primitiva, ou é altamente avançada, não há nada no meio. No Centro-Oeste, no Brasil central, que é hoje um dos grandes celeiros do mundo, a atividade predominante é a monocultura da soja e a pecuária extensiva. Nós teríamos de recuperar as pastagens degradadas, muito maiores em extensão territorial do que a área cultivada, e transformá-las no palco de um novo modelo agropecuário, com intensificação da pecuária, manejo florestal sustentável e, sobretudo, industrialização progressiva dos produtos agropecuários.
Quais são os desafios para elevar a produtividade? Metade da força de trabalho no Brasil afunda nas sombras da ilegalidade, são os informais. Se somar os informais com os precarizados, é a grande maioria da força de trabalho. Como apostar numa dinâmica de produtividade crescente e inclusiva quando a maioria de nossa força do trabalho é desequipada intelectualmente, tecnologicamente e desorganizada? Então, essa é a travessia rumo a uma economia do conhecimento. É preciso mudar radicalmente a relação entre o setor financeiro, o bancário e a produção. Hoje, os bancos estão conduzindo o Brasil. Também é preciso revolucionar a educação brasileira como a contraparte dessa orientação produtivista. Romper com a decoreba, instituir um ensino analítico e capacitador, privilegiando as capacitações analíticas e sintéticas da imaginação, e não a memorização da enciclopédia.
O senhor, quando ministro, coordenou o Plano Amazônia Sustentável. Como avalia a gestão da ministra Marina Silva? Absurda. É justamente um extrativismo artesanal, como se a produção fosse inimiga da floresta. Na Amazônia, o problema essencial é o caos fundiário. Ninguém sabe quem tem o quê. A prioridade é a regularização fundiária. Não pode tratar poceiros que estão lá há três gerações como se fossem grileiros. Há grileiros, mas a massa de brasileiros empreendedores que estão lá não são grileiros. Se eles não tiverem alternativas compatíveis com a preservação da floresta, serão impelidos para a atividade devastadora. A Amazônia não é um conjunto de árvores, é uma comunidade de gente. E essa gente precisa ter opções, começar a construir os vínculos entre o complexo verde e o complexo industrial urbano. Uma atividade produtiva na cidade voltada para o potencial da região. Isto que é desenvolvimento sustentável. Não é nós fazermos da Amazônia um grande parque temático, vazio, para o deleite dos noruegueses.
Mas os índices de desmatamento na Amazônia caíram recentemente. Isso não é um bom sinal? Caíram, mas por uma orientação predominantemente policial. Não caíram tanto quanto na minha época. Nós precisamos zelar pelas leis ambientais, mas precisamos sobretudo criar alternativas sustentáveis. O Brasil tem extraordinária riqueza natural, pode ser a potência ambiental mais importante do mundo. Agora, como produzir isto na política do país? Eu acho que, paradoxalmente, a polarização política teria que ser desmontada ou transformada para permitir que surja a verdadeira alternativa de projeto.
Em 2026, devemos ter novamente uma disputa entre o PT e um representante do bolsonarismo. Essa polarização veio para ficar? Nosso problema profundo não é que haja um dissenso. Falta uma alternativa a essa que está no poder. Essa falsa direita e essa falsa esquerda têm o mesmo projeto. Quando eu digo falsa direita, é porque ela não fez no poder o que um partido sério de direita teria de fazer, que é organizar as bases de um capitalismo popular. E é uma falsa esquerda porque ela só distribui açúcar, ela adora a pílula do modelo econômico pelos programas de transferência, ela não democratiza a economia, não democratiza as oportunidades, não levanta o brasileiro. Então, eles convergem nesse não projeto e fingem criar um antagonismo, desviando o foco para as questões morais, para a política identitária da esquerda e as guerras culturais da direita. Então nós temos duas forças que querem nos meter numa briga moral entre duas políticas de costumes, mas que não têm nenhuma proposta para os problemas do dia a dia dos brasileiros. O que eu proponho, então, para desarmar isso? Primeiro que o presidente Lula não se candidate à reeleição. Em vez de se candidatar à reeleição, construa um sucessor.
Quem seria esse sucessor? Eu sugiro que ele apoie um dos governadores do Nordeste. Vejo o Rafael Fonteles, do Piauí, com grande simpatia. É um excelente gestor, comprometido com a ideia de casar a inteligência com a natureza. O PT é um partido hoje essencialmente nordestino, mas absurdamente comandado por São Paulo. E quem aparece na mídia é o embaixador de Lula ao mercado financeiro, o Haddad. Esse não deve ser o caminho para o PT. Não é a melhor maneira de abrir a porta do futuro.
E Bolsonaro? Bolsonaro teria três opções. Uma seria apoiar alguém do círculo íntimo, a mulher ou um filho. E eu acho que essa opção não funcionaria na prática, seria muito ruim para o país e para ele. A segunda opção é alguém do agrupamento político, como os governadores Tarcísio e Caiado. É melhor que a primeira opção, mas esses governadores entram no jogo dessa combinação de rentismo financeiro e pobreza. A melhor opção, a mais difícil e, claramente a menos provável, é que ele apoie alguém de fora do agrupamento político, que represente a ideia produtivista e capacitadora. Essa seria a opção audaciosa e desprendida. O brasileiro não tem viés contra o outsider desconhecido, mas a liderança tem que ser construída, e nós precisamos então de um movimento.
No início do ano o senhor conversou com Bolsonaro e cogitou apresentar um habeas corpus a favor dele. Falou com o ex-presidente de novo depois disso? Não me encontrei com ele outra vez, mas converso com muita gente. Temos que conversar com todos. Nessa situação que eu descrevi, da falsa polarização e de não-projeto, como é que vamos resolver a nossa vida nacional, reorientá-la, se não conversamos uns com os outros? Então, a minha atitude é conversar com todos. Para mim, ninguém é inconversável.
Bolsonaro fez ataques ao sistema eleitoral, ameaças antidemocráticas e já defendeu abertamente a ditadura militar. Dialogar é necessário, mas não há hoje uma normalização dessa direita que joga fora do campo democrático? Conversar com alguém não significa que eu aceito o que a pessoa fez, o que diz, o que pensa. Até o surgimento de Bolsonaro, a grande minoria evangélica, protestante, estava órfã de voz política. Ninguém a representava. Surgiu Bolsonaro e deu voz a eles. Nós podemos julgar que é uma voz distorcida, que é uma voz imprópria, mas é melhor que tenha uma voz ruim do que não tenha voz. Vamos lutar então para dar outras vozes, para melhorar a representação política ideológica dessa grande maioria. Enquanto isso, tem que conversar com os que existem. Não fui eu que inventei Bolsonaro, como não inventei Lula. Mas eles são os que existem, que estão presentes. Temos que conversar com eles, temos que tratar com eles. E não tratar com aqueles que estão legitimados na nossa ideia do pacto civilizatório. Se queremos reconstruir o Brasil, temos que começar por vê-lo como ele é e tratar com os representantes reais de suas forças existentes.
Essa ascensão da extrema-direita no mundo todo preocupa? Temos que compreender como ela ocorreu. Ela ocorreu porque os partidos de centro-esquerda e centro-direita não souberam dar resposta eficaz aos problemas fundamentais dessa sociedade. Na Europa, por exemplo, não resolveram o agravamento da desigualdade. O populismo plutocrático de direita também não tem um projeto estrutural. O que ele propõe é fechar as fronteiras e reforçar o Poder Executivo. A consequência é que ele perpetua o vácuo. O vácuo continua. Esses regimes de direita logo são derrotados nas eleições e as populações europeias continuam buscando alternativa onde não parece haver alternativa alguma. Essa é a realidade.
Nas últimas semanas o governo Lula sofreu várias derrotas no Congresso, inclusive com a ajuda de partidos que ocupam ministérios. O presidencialismo de coalizão morreu? Falta articulação ou o Congresso é que mudou? Nós temos o pior de todos os regimes. Nós agravamos um defeito do presidente do estado americano, que é o seguinte, o presidente é eleito com um mandato forte. Ele chega ao poder prometendo mundos e fundos às massas. E lá ele tem as mãos atadas. Ele é forte para punir ou agravar interesses, mas ele é fraco para transformar. O regime político sempre depende da circunstância. O regime presidencial permite que o outsider tenha uma marcha direta ao centro do poder, mas seu defeito é atar as mãos. Uma alternativa seria equipar o regime presidencial com mecanismos constitucionais para romper os impasses rapidamente, como plebiscitos abrangentes ou eleições antecipadas. A lógica é do apequenamento. Em vez de manter o que é bom no presidencialismo, nós generalizamos a paralisia pelo troca-troca. Como a política causa perturbações, elas são resolvidas pela troca, pelo clientelismo, pelos favores entre o Executivo e o Congresso. Repito, precisamos de um movimento vindo do país, da sociedade civil, para exigir uma alternativa que empodere.
O senhor conversou com o presidente depois que ele tomou posse? Eu tentei uma audiência com Lula, ele não me concedeu. Várias vezes. Cada vez que eu venho ao Brasil, eu peço ao secretário dele uma audiência. Acho normal que ele não queira. É compreensível. Sou apenas um cidadão particular. Também não há razão para ele gastar o tempo dele falando comigo. Mas achei correto que, havendo conversado com um, pelo menos procurasse conversar com o outro.