Passados cem dias das enchentes que devastaram boa parte do Rio Grande do Sul, o estado ainda patina para se reconstruir. Reportagem na edição de VEJA desta semana mostra como, além dos mortos e desalojados, a infraestrutura gaúcha foi dilapidada do litoral ao oeste.
Os esforços empreendidos desde então já recuperaram uma parte considerável do que foi devastado, mas há muito a ser feito. Existem ainda 2.846 pessoas morando em abrigos em 32 municípios. Nove em cada dez cidades continuam em situação de emergência ou de calamidade pública. O Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, continua com as pistas interditadas — a previsão é de retorno parcial das operações em outubro. A mobilidade pelo estado ainda esbarra em 38 trechos de rodovias interditados em razão da destruição pelas águas. Na habitação, uma das áreas mais urgentes, a burocracia atrasa o processo. O governo federal autorizou a contratação de moradias pelo Minha Casa, Minha Vida, mas as unidades ainda estão longe de ser entregues.
A VEJA o governador Eduardo Leite (PSDB) falou sobre as ações empreendidas na reconstrução do estado — que acaba de lançar o Plano Rio Grande — e afirmou haver uma boa interlocução com o governo federal, mas queixou-se da burocracia extrema, que retarda a chegada de recursos. “Muitas vezes o diálogo poderia ser mais produtivo”. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
O senhor tem se queixado da falta de efetividade do governo federal ao enviar recursos ao Rio Grande do Sul. Qual a dificuldade maior hoje? O que a gente observa é que muitas medidas que são anunciadas têm regulamentação complexa para acessar recursos e que acabam não sendo efetivadas, o que gera um descompasso entre o tamanho do anúncio e o que efetivamente acontece na realidade. Há medidas tomadas pelo governo federal? Há. Mas nem de longe corresponde ao que a propaganda oficial apresenta em termos de impacto.
Em que sentido? Por exemplo, as operações de crédito que são disponibilizadas, os financiamentos. Na pandemia, houve um dispositivo que permitia o acesso das operações de crédito pelas empresas que estivessem negativadas. A gente defende que isso fosse aplicado agora também, que aquelas empresas que acabaram sendo negativadas por conta da dificuldade de cumprir seus compromissos em função da calamidade, que tivesse o dispositivo. E isso não foi viabilizado. O governo argumenta uma série de dificuldades, mas que, segundo a minha equipe técnica, temos convicção de que são contornáveis. O governo pode, por medida provisória, ajustar isso para que o recurso chegue nas empresas que estão precisando. É o caso também da medida para manutenção de emprego e renda, que foi algo que reivindicamos. Que assim como foi na pandemia, que fosse adotada uma medida para que o governo pagasse parte do salário de trabalhadores evitando demissões pelas empresas. O governo demorou muito a anunciar. Quando anunciou, fez um anúncio sem apresentar a regulamentação, demorou para ter a regulamentação e a regulamentação veio de uma forma tão complexa e tão restritiva que do 1,2 bilhão de reais que o governo federal anunciou, pouco mais de 100 milhões de reais é que foram efetivamente acessados. Ou seja, foram medidas eficazes e que podiam, de forma descomplicada, serem aplicadas agora, mas o governo preferiu trilhar caminhos mais difíceis, mais burocratizados, que acabaram significando frustração de muitas expectativas.
Ainda cerca de 70% dos municípios gaúchos seguem em estado de emergência, com milhares de desalojados. Qual tem sido a prioridade do governo na questão da moradia? Temos endereçado uma série de ações para famílias impactadas. Temos cerca de 3.000 pessoas em abrigos provisórios, como ginásios, além de pessoas beneficiadas pelo aluguel social, que é o estado e a respectiva prefeitura dividindo esse valor. Também temos o projeto de estadia solidária, que é pagar para que famílias acolham outras famílias que estão desabrigadas. Para aqueles que mesmo assim não conseguem ter para onde ir, criamos os centros humanitários de acolhimento que estão funcionando em Canoas e em Porto Alegre, acolhendo também milhares de pessoas que ainda vão precisar, por um tempo, estar nesses espaços até que tenham para onde ir. E também começamos a implantar essa semana as primeiras 30 casas provisórias, em Eldorado. O estado contratou 500 unidades dessas.
A entrega das casas provisórias começou dia 1º de agosto. Por que a demora de mais de três meses? O estado teve que fazer a contratação desses módulos provisórios. Feito esse processo, a empresa fabrica os módulos para disponibilizar ao estado. Uma vez que se viabilizem as casas definitivas para as pessoas, essas casas provisórias serão armazenadas e poderão ser reutilizadas em outras circunstâncias. Ou seja, o estado vai ter esses 500 módulos para uso em situações de emergência.
As casas definitivas têm sido anunciadas pelo governo federal, principalmente pelo programa Minha Casa, Minha Vida. Mas ainda nenhuma saiu do papel. Qual a dificuldade? A complexidade reside na identificação das áreas. É preciso fazer a preparação de terreno, estruturas para receber as moradias, saneamento, energia. Em algumas prefeituras a gente já está conseguindo encaminhar isso, outras têm mais dificuldade. O Estado está procurando também contratar equipes técnicas para dar suporte às prefeituras que têm mais dificuldades de equipes técnicas para poder ajudá-las a desenvolver esses projetos e conseguirmos colocar as casas definitivas.
No final de julho, o governo estadual fez um chamamento público para que municípios enviem projetos para o Plano Rio Grande. Quais têm sido as prioridades do plano de reconstrução do estado? Esse chamamento público se propõe a receber das prefeituras projetos que elas tenham, mesmo em concepção inicial. Porque nós temos uma dificuldade de governança federativa no Brasil. Às vezes as prefeituras desenvolvem projetos e buscam diretamente no governo federal, sem trazer isso ao governo do estado. Então queremos ajudar a articular, seja a liberação de recurso federal, seja viabilizar outra fórmula de financiamento, seja o estado mesmo financiando programas e projetos que atendam as necessidades diante da calamidade.
Haverá parcerias com o governo federal? A ideia é buscar parcerias com o governo federal e com organismos internacionais. A ideia é receber os programas e os projetos que os municípios estejam desenvolvendo em qualquer fase de concepção. Caso esteja pronto para executar, vamos buscar ajuda para financiar. A partir de então, vamos poder aglutinar essas iniciativas em eixos e desenvolver programas de financiamento do governo do Estado para muitas dessas iniciativas. E para aquelas que não formos capazes de financiar, vamos buscar os recursos, inclusive com o governo federal. Muitas vezes os municípios desenvolvem projetos só depois que eles identificam alguma fonte de financiamento. O que a gente quer agora é poder conhecer as iniciativas, mesmo que em que estágio inicial
E por que o chamamento está sendo feito apenas agora? Alguns prefeitos alegam que isso poderia ter sido feito antes. O estado está agindo durante esses três meses em todas as frentes. A gente fez repasses de recursos para os municípios, mais de 300 milhões de reais de repasses livres no fundo da Defesa Civil. Porque a lógica do nosso governo é justamente a de desburocratizar. A gente observa que muita coisa para a liberação de recursos federal envolve a necessidade de apresentar um plano de trabalho que tem que ser aprovado, que leva tempo para conseguir atender e liberar recursos. Os municípios já estão recebendo recursos para as ações emergenciais e de restabelecimento de serviços. Agora a gente está indo para uma etapa de reconstrução e de construção de resiliência e adaptação. Então está dentro da fase adequada. Até aqui as ações e a energia e a estrutura técnica dos governos estavam dedicados à tratar de atenção emergencial e restabelecimento de serviços e ligações viárias e tudo mais. Agora a gente parte para uma etapa de construção e reconstrução, olhando a adaptação e resiliência.
Como está a interlocução com o governo federal, com o Ministério da Reconstrução, conduzido pelo ministro Paulo Pimenta? Olha, há um esforço para estabelecermos uma relação que atenda aos interesses do estado. Não há enfrentamento e há diálogo. O ponto objetivo é que muitas vezes esse diálogo poderia ser mais produtivo. Se houvesse, por exemplo, antes do anúncio por parte do governo federal das suas medidas, uma disposição de trabalhar as soluções em reuniões de trabalho operacionais, técnicas, com as nossas equipes. A não realização dessas reuniões de trabalho antes dos anúncios acaba significando, eventualmente, iniciativas tomadas pelo governo federal em áreas em que o estado já está atuando. Há disposição de construir, mas a gente pode buscar azeitar melhor essa relação se a preocupação for um pouco menos com o anúncio e mais com a solução dos problemas. Minha posição como governador não é de simplesmente aderir ou fustigar o governo federal. Estou defendendo os interesses do Estado.
Outro ponto que o senhor tem defendido é que o governo federal tenha mais ações para o setor agropecuário. Em que medida isso se faz necessário? Para o agronegócio é grave porque, nos anos anteriores, eles já sofreram com estiagem severa. Nós tivemos em 2023 um período de estiagem que fez com que o estado perdesse mais de 30% da safra da soja. E nos anos anteriores também tivemos recorrentes estiagens que fizeram perder muito da produção agrícola. Boa parte dos produtores rurais já vinham de anos difíceis, com dificuldades em cumprir seus compromissos e foram afetados agora pelas enchentes, não apenas aqueles que tiveram inundação das suas áreas, das suas lavouras ou perderam animais, mas também produtores que pela chuva intensa viu a sua plantação apodrecer porque não conseguiu sequer colher. O agronegócio também espera que seja apresentado algo mais robusto pelo governo federal em termos de financiamentos que permitam reorganizar as dívidas de quem já vinha com dificuldades por conta da situação climática anterior.