Analfabetismo funcional alimenta desigualdade, diz chefe da Fundação Itaú
Para Eduardo Saron, a educação no Brasil precisa avançar tanto em disciplinas tradicionais quanto no pensamento crítico e no uso de ferramentas digitais

O Indicador do Alfabetismo Funcional (Inaf), publicado nesta segunda-feira, 5, traz dados preocupantes sobre as competências dos brasileiros em leitura, escrita e matemática. Segundo a pesquisa, praticamente um em cada três cidadãos pode ser considerado analfabeto funcional — condição de quem é capaz de ler e fazer contas no nível básico, mas tem dificuldades em interpretação de textos e raciocínio lógico, além de inaptidão no uso de tecnologias digitais.
“Esta perspectiva tira as esperanças dos nossos jovens e nos leva à perda dos talentos brasileiros”, avalia Eduardo Saron, presidente da Fundação Itaú, uma das instituições responsáveis pelo Inaf. Em entrevista a VEJA, ele aborda os principais desafios para vencer o analfabetismo funcional no país, preparar os trabalhadores para as transformações digitais e quebrar o ciclo de desigualdades alimentado pelos déficits na educação brasileira.
Leia, a seguir, a entrevista completa:
De forma geral, como podemos definir o que é um analfabeto funcional? Um analfabeto funcional não consegue compreender ou interpretar informações que surgem no seu cotidiano. Ele consegue ler uma fatura de conta de luz, por exemplo, mas tem dificuldades em entender os gráficos de consumo; consegue ler uma manchete, mas não identificar a mensagem principal da notícia, tampouco julgar se a informação é confiável. No mundo digital, ele consegue digitar uma mensagem ou fazer uma ligação, mas tem dificuldade em configurar mecanismos de segurança.
Quais são as competências em leitura e matemática necessárias para que alguém exerça plenamente a sua cidadania? No caso da língua portuguesa, é fundamental ter a capacidade de leitura crítica e interpretação de texto – compreender por exemplo, se uma informação vem de um veículo consolidado ou de uma publicação em rede social. É preciso ter uma capacidade de comunicação com clareza, seja para conversar com amigos pelo WhatsApp com clareza ou para escrever um currículo. No dia a dia, a matemática e o raciocínio lógico são necessários para tomar decisões no dia-a-dia, como fazer um planejamento financeiro ou entender indicadores econômicos, como a taxa de inflação do país.
Apesar da ampliação do acesso ao ensino formal nas últimas décadas, mais de um quarto dos brasileiros ainda são analfabetos funcionais, índice que não mudou desde 2018. O que essa estagnação diz sobre o nosso sistema educacional? Se me perguntar qual é o grande problema da educação brasileira, é a matemática. De cada cem alunos que se formam no ensino básico, só cinco sabem matemática adequada ao ano da sua formação. Um caminho para a solução é a educação integral, que está sendo implementada no Brasil, com duas dimensões: avançar nas disciplinas tradicionais, mas também nas artes, nas habilidades relacionais e na presença do esporte na educação. Mas o aprendizado não se dá apenas na escola, ele ocorre ao longo da vida. Precisamos olhar também para programas de qualificação profissional a partir desse déficit educacional e abordar o pensamento crítico e criativo.
Como essas altas taxas de analfabetismo impactam o desenvolvimento econômico no Brasil? Quais são as “lacunas” entre a formação intelectual e as demandas do mercado de trabalho? Um funcionário afetado pelo analfabetismo funcional tem dificuldades em ler manuais e interpretar ordens, seguir protocolos e preencher formulários, por exemplo, o que aumenta o desperdício de recursos e exige mais investimentos das empresas em treinamento. Além disso, esse trabalhador sempre estará mais exposto ao desemprego e à baixa capacidade de reinserção no mercado. Isso causa perda de produtividade e competitividade nacional, compromete o crescimento econômico e gera um ciclo vicioso de desigualdade, algo que não se quebra facilmente.
“O analfabetismo funcional causa perda de produtividade e competitividade nacional, compromete o crescimento econômico e gera um ciclo vicioso de desigualdade, algo que não se quebra facilmente”
A pesquisa indica, ainda, discrepâncias entre o grau de alfabetização e a proficiência em atividades digitais, com pessoas altamente escolarizadas apresentando dificuldades nas tarefas envolvendo tecnologia. Existe um vácuo na educação brasileira em relação ao novo mundo digital? Para melhorar a competência digital, não basta apenas avançar em letramento e matemática, não é uma relação causal direta. Precisamos de uma trilha formativa que aborde as transformações digitais, seja no nível técnico e integral ou na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Isso fica claro, também, em relação à inteligência artificial: temos a capacidade de aproveitar as novas ferramentas, mas ainda estamos na periferia global do seu uso. Não podemos continuar nesta perspectiva que tira as esperanças dos nossos jovens e nos leva à perda dos talentos brasileiros para outros países.