Temos visto nos últimos anos, cada vez com maior frequência, a prescrição do antibiótico ciprofloxacino para quadros infecciosos (ou mesmo não infecciosos) para os quais ele é desprovido de qualquer efeito terapêutico. Um grande número dessas prescrições é realizada por médicos que trabalham em serviços de pronto-atendimento, isto é, aqueles profissionais que vêm o paciente muitas vezes na primeira vez que procuram atendimento médico. Mas não é incomum que nos deparemos com a prescrição inadequada desse antibiótico por outros médicos, como clínicos gerais, cirurgiões gerais, ginecologistas, dermatologistas, otorrinolaringologistas, etc.
Prescrição imprópria
Quais são as condições clínicas nas quais esse produto é mais comumente prescrito de forma imprópria ?
- Infecções de pele e tecido celular subcutâneo (por exemplo, impetigo, erisipela, abscessos, etc);
- Pneumonias adquiridas fora do ambiente hospitalar;
- Infecções urinárias;
- Infecções de vias aéreas superiores (amidalite, otite, laringite, faringite, sinusites).
As prescrições de antibióticos para tais indicações, quando se somam, respondem certamente por cerca de 25% a 35% de todas prescrições de antibióticos na prática clínica diária.
Por que dizemos que são prescrições inadequadas ?
Quando se prescreve um determinado antibiótico para o tratamento de alguma infecção bacteriana há de se levar em consideração:
- A atividade desse antibiótico diante da bactéria que se presume ser a principal causadora do processo infeccioso em questão;
- A concentração desse antibiótico no local onde a infecção se situa, isto é, se após sua administração (por qualquer via, oral- intramuscular – endovenosa) ele alcançará níveis suficientes no local onde se situa a infecção de modo a que iniba o crescimento da bactéria ou acabe por matá-la.
Todas as infecções acima mencionadas constituem-se exemplos em que essas duas características não são preenchidas pelo cipro. Assim sendo, salientemos que as bactérias principais causadoras de infecções de pele e tecido celular subcutâneo não estão incluídas dentre aquelas que se constituem no assim denominado “espectro de atividade do antibiótico”. Alia-se a isso, o fato conhecido que essa droga não atinge concentrações suficientes nesses tecidos de modo a que pudessem ser efetivamente úteis no tratamento dessas condições clínicas, das mais corriqueiras na prática clínica diária.
O uso de cipro no tratamento de pneumonias caracteriza-se pelas mesmas condições acima expostas: reduzida atividade contra os micro-organismos principais causadores de pneumonias adquiridas fora do ambiente hospitalar e baixa concentração em tecido pulmonar.
Riscos: resistência bacteriana
Já em relação às infecções do trato urinário, as condições são peculiares. Durante muitos anos, desde o lançamento desse antibiótico no início da década de 1980, o tratamento dessas infecções constituía-se excelente indicação do produto, que foi então extensivamente utilizado. Esse uso, talvez exagerado, paulatinamente veio se associando ao encontro crescente de resistência ao cipro das bactérias mais comumente implicadas nesse tipo de infecção.
A bactéria Escherichia coli é causadora de mais de 70% dessas infecções, sendo que atualmente cerca de 40-50% delas se mostram resistentes a esse antibiótico. Como regra geral em antibioticoterapia, preconiza-se o uso empírico (isto é, uso prévio à identificação do agente bacteriano causador da infecção e do conhecimento do perfil de sensibilidade e resistência – “antibiograma”- da bactéria aos antibióticos) somente quando se tem conhecimento que o índice de resistência ao antibiótico não supere a taxa de 20% (preferencialmente sendo inferior a 10%).
Ressaltemos que esses índices de sensibilidade e resistência são muito variáveis de acordo com o local onde o paciente se encontra e, por esse motivo, preconiza-se que os Serviços de Controle de Infecção Hospitalar (SCIH) atuantes em todas instituições de saúde divulguem mensalmente esse perfil para que o médico prescritor atuando naquela instituição tenha conhecimento que embase a prescrição correta do antibiótico. Infelizmente, não é essa a condição que vigora em nosso país. Temos visto em vários locais de nosso Brasil, que a grande maioria dos médicos não tem conhecimento desse perfil e não o demanda dos SCIH, em muito afetando uma melhor prática clínica.
No que tange às infecções das vias aéreas superiores, vigoram os mesmos óbices relacionados quanto ao tratamento de infecções cutâneas e pneumonias, isto é, reduzida atividade diante dos principais causadores dessas infecções aliada à reduzida concentração do antibiótico no local onde se situa o processo infeccioso.
Além da ineficácia do cipro diante dessas infecções, problema da maior relevância correlaciona-se aos mecanismos de resistência das bactérias a esse antibiótico e a grande probabilidade dessa resistência acabar por vir gerar resistência diante de uma ampla gama de outros antimicrobianos.
Tipos de resistência bacteriana
Em termos gerais, a resistência bacteriana pode ser transmitida verticalmente (isto é, todas as bactérias descendentes da bactéria original que desenvolveu mutações cromossômicas que geraram a resistência acabam por serem também resistentes, uma vez que compartilham esse material cromossômico) ou horizontalmente (a bactéria gera material genético extra-cromossômico – denominado plasmídeo – situado no citoplasma da célula, que porta a mutação responsável por codificar a alteração responsável pelo mecanismo de resistência contra o ciprofloxacino, material apto a ser transferido não somente à sua descendência como também a toda e qualquer outra bactéria com a qual essa primeira bactéria venha a conviver no micro-ambiente que habita).
A resistência ao cipro pode ser das duas naturezas, isto é, vertical e horizontal. Outra característica marcante é que o plasmídeo associado à resistência a esse antibiótico acaba por se acoplar a outros plasmídeos que portam material genético que se associa a resistência a outros antibióticos, principalmente os beta-lactâmicos (penicilinas, cefalosporinas, carbapenêmicos), macrolídeos, tetraciclinas e aminoglicosídeos.
Esse acoplamento consubstancia a formação de “cassetes” de plasmídeos, elementos genéticos extra-cromossômicos que representam então verdadeira arma mortal que inativa uma grande parte dos antibióticos conhecidos, sendo uma das causas mais importantes do desenvolvimento da multi-resistência bacteriana.
Conscientização
Em resumo, o uso indiscriminado de cipro pode gerar resistência bacteriana não somente contra ele, mas pode representar o caminho através do qual a bactéria vai se tornar resistente a grande parte dos antibióticos disponíveis no arsenal terapêutico.
Assim sendo, devemos lembrar ao médico que prescreve o antibiótico sua responsabilidade não somente diante do paciente sujeito de sua prescrição, mas também sua responsabilidade social em impedir a geração e posterior disseminação de resistência bacteriana, que vem cada vez se caracterizando como um dos mais importantes problemas de saúde pública, ponto de vista corroborado pela Organização Mundial da Saúde.
Quem faz Letra de Médico
Adilson Costa, dermatologista
Adriana Vilarinho, dermatologista
Ana Claudia Arantes, geriatra
Antonio Carlos do Nascimento, endocrinologista
Antônio Frasson, mastologista
Artur Timerman, infectologista
Arthur Cukiert, neurologista
Ben-Hur Ferraz Neto, cirurgião
Bernardo Garicochea, oncologista
Claudia Cozer Kalil, endocrinologista
Claudio Lottenberg, oftalmologista
Daniel Magnoni, nutrólogo
David Uip, infectologista
Edson Borges, especialista em reprodução assistida
Fernando Maluf, oncologista
Freddy Eliaschewitz, endocrinologista
Jardis Volpi, dermatologista
José Alexandre Crippa, psiquiatra
Ludhmila Hajjar, intensivista
Luiz Rohde, psiquiatra
Luiz Kowalski, oncologista
Marcus Vinicius Bolivar Malachias, cardiologista
Marianne Pinotti, ginecologista
Mauro Fisberg, pediatra
Miguel Srougi, urologista
Paulo Hoff, oncologista
Paulo Zogaib, medico do esporte
Raul Cutait, cirurgião
Roberto Kalil, cardiologista
Ronaldo Laranjeira, psiquiatra
Salmo Raskin, geneticista
Sergio Podgaec, ginecologista
Sergio Simon, oncologista