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Como um marshmallow e o cérebro explicam o endividamento

Pode parecer bobo, mas um experimento realizado com crianças e marshmallows é capaz de explicar os mecanismos do endividamento na vida adulta

Por José Alexandre Crippa
Atualizado em 6 jul 2017, 16h26 - Publicado em 6 jul 2017, 16h24

No final da década de 60, um grupo de pesquisadores da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, realizou um experimento singular, que marcou definitivamente a psicologia comportamental. Os avaliadores ofereceram um marshmallow a crianças de aproximadamente quatro anos e lhes foi dito que poderiam comer aquele doce a qualquer momento. Porém, caso elas conseguissem esperar por um curto período, receberiam uma recompensa ainda maior: dois marshmallows! Os avaliadores deixavam a sala e retornavam apenas 15 minutos depois.

A importância de retardar a gratificação

O propósito deste estudo foi avaliar a capacidade das crianças em “retardar a gratificação”, uma habilidade cujos impactos extrapolaram a simples possibilidade de esperar para receber algo desejado. Os investigadores observaram que apenas um terço das crianças conseguiram aguardar o tempo necessário para obter o dobro da gratificação com dois marshmallows (em estudos posteriores, ás vezes utilizaram um biscoito, chocolate ou outra guloseima). Com o passar da idade, verificou-se que as crianças maiores (entre 8 e 13 anos) passavam a conseguir “retardar a gratificação” mais facilmente e os adolescentes e adultos jovens conseguiam postergar ainda mais a recompensa.

A grande importância destes achados foi demonstrada em estudos longitudinais posteriores. As crianças que foram capazes de controlar seus impulsos naquela simples tarefa, de modo geral, se tornaram adolescentes mais competentes cognitivamente e com mais habilidades em diversos comportamentos sociais. Como exemplo, apresentavam maior capacidade para compartilhar e interagir com os seus pares; obtiveram melhor desempenho escolar; toleravam mais facilmente a frustração e demonstraram menor probabilidade de desenvolver transtornos de conduta, hiperatividade e estresse.

Já na vida adulta, estas mesmas crianças eram menos impulsivas, com menor chance de ter problemas com drogas; além de serem capazes de tolerar uma rejeição. Além disso, eram mais propensas a manter casamentos estáveis e com menor chance de desenvolver obesidade.

Imediatismo era questão de sobrevivência

Em termos evolutivos, esperar pela gratificação, aparentemente, não seria um bom negócio para nossos ancestrais pré-históricos. Afinal, os custos para a sobrevivência seriam muito altos:

  • Outro animal poderia comer o alimento obtido (ou poder ser atacado por um predador que não hesitaria em tê-lo como “gratificação imediata”);
  • Perder tempo que poderia ser gasto procurando mais comida;
  • Ou ainda simplesmente o alimento estragar.
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Conquista da evolução

Assim, a capacidade do ser humano em adiar a gratificação pode ser considerada uma conquista na evolução de nossa espécie – que nos levou não só a estocar, manufaturar e industrializar alimentos para garantir a perpetuação da espécie, mas também permitiu o desenvolvimento do controle cognitivo para a obtenção de uma recompensa ainda maior.

Em termos neurobiológicos, como explicaríamos esse nosso comportamento? Sabemos que algumas regiões cerebrais apresentam um papel crucial em termos de busca por gratificação. Por exemplo, o estriado ventral é uma área do primitivo sistema límbico, sabidamente ligado ao prazer imediato e à recompensa cerebral.

Por outro lado, o córtex pré-frontal é a área do cérebro que modula e inibe o sistema límbico, por meio de processos cognitivos relacionados a atenção, foco e razão. O córtex pré-frontal desempenha funções mais complexas e se desenvolve na medida em que o cérebro amadurece durante a adolescência e no início da vida adulta, mais tardiamente do que o sistema límbico.

Assim, de modo interessante, um estudo com imagem cerebral com a mesma amostra das crianças do estudo original de Stanford (40 anos depois), demonstrou que uma área específica do córtex pré-frontal (giro pré-frontal inferior) era mais ativada naqueles participantes que conseguiram “retardar a gratificação” na infância, enquanto o estriado ventral era mais excitado nos voluntários mais impulsivos/imediatistas do estudo original.

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Portanto, traçando um paralelo desses achados para o campo da economia, caso o nosso cérebro fosse um investimento, poderíamos dizer que o córtex pré-frontal seria uma aplicação financeira segura e rentável no médio e longo prazo. Por outro lado, o estriado ventral estaria mais próximo do crédito rotativo do cartão de crédito, com toda a sua facilidade de acesso imediato, mas com taxas astronômicas de juros. Ou seja, enquanto o pré-frontal seria a precavida formiga, o estriado ventral seria a despreocupada cigarra cantora de verão, tão consagrada na fábula de Esopo/La Fontaine.

A analogia com o endividamento

Mas afinal o que estes estudos poderiam nos ensinar em relação ao endividamento nos dias atuais? Dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), apurada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), recentemente demonstrou que o percentual de famílias endividadas no Brasil alcançou agora em maio (2017) quase 60%.

Ou seja, assim como as crianças de 4 anos do estudo de Stanford, apenas cerca de um terço da população economicamente ativa consegue “retardar a gratificação” para poupar ou investir, sendo que a grande maioria prefere adquirir bens ou serviços de imediato. Destas famílias que possuem dívidas, o rotativo do cartão de crédito permanece como a principal forma de endividamento.

Isto é particularmente alarmante, pois as taxas de juros desta modalidade estão próximas a 500% ao ano. Ou seja, por não retardar a gratificação, na realidade pagam, pelo menos, cinco vezes por aqueles produtos ou serviços que adquiriram, o que é muito maior (e considerando os produtos mais caros) do que os dois inocentes marshmallows do experimento de Stanford.

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Outras formas de endividamento como o crédito pessoal ou os juros do cheque especial não ficam muito longe, com taxas de mais do que 300% ao ano, ou – se preferir – mais do que três guloseimas ao fim do período, sem contar os juros compostos. Isso tudo contrasta com os financiamentos mais sensatos quanto a necessidades prioritárias, como a compra do imóvel, cujas taxas de juros são infinitamente menores (em torno de 10% ao ano) que, embora elevadas em relação a outros países, em geral representa uma parcela muito menor do endividamento familiar.

É preciso aprender a retardar a gratificação

Assim, a capacidade de retardar a gratificação pode ter impacto não só em relação a moderação dos impulsos, auto-controle, equilíbrio, mas também no planejamento financeiro. Retardar a gratificação, ter paciência, manter o controle e resistir ao bombardeio de propagandas da mídia ‒ que valorizam o imediatismo para a aquisição de bens e revestem de glamour a busca do status social ‒, representa uma escolha mais madura e racional.

Desse modo, a conscientização de que a utilização de funções cerebrais mais evoluídas pode ajudar a economizar, poupar e investir, reduzindo o stress do endividamento e estimulando a capacidade individual para adaptar as suas necessidades com as demandas efetivas, o que pode levar a um futuro mais tranquilo e confortável…E com acesso a muitos “marshmallows”!

“Tendo a cigarra em cantigas;
Passado todo o verão;
Achou-se em penúria extrema;
Na tormentosa estação.”

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Trecho de A Cigarra e a Formiga* de La Fontaine**
*Observação 1 – A Cigarra e o gafanhoto, no original
** Observação 2 – Tradução para o português de Bocage

 

José Alexandre Crippa

 

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