No dia a dia a medicina colhe evidências sobre as vantagens para o corpo e a mente de se cultivar bons sentimentos e praticar boas ações, demonstrando compaixão e perdão, por exemplo. E a cardiologia é uma das especialidades que mais estudam as manifestações da espiritualidade em prol da saúde.
Embora não se estabeleça uma relação direta sobre o impacto da espiritualidade no coração, é fácil identificar o caminho que ela percorre até atingir, literalmente, as artérias e o músculo cardíaco.
Sabemos que uma rotina de estresse faz com que o organismo libere constantemente hormônios como a adrenalina, responsável pelo aumento dos batimentos cardíacos e pela elevação da pressão arterial. O desequilíbrio entre esses fatores, por determinado tempo, abre precedentes para injúrias cardíacas. Em contrapartida, pesquisas comprovam que pessoas espiritualizadas encaram menor dificuldade para manejar a tensão diária.
Veja, a espiritualidade não está necessariamente ligada à religião. Ela pode ser definida como a busca pelo sentido da vida, maior conexão consigo mesmo, com os outros e com o ambiente.
Um estudo que acompanhou um público sobretudo feminino (91,2%) em um hospital público brasileiro evidenciou conexão entre religiosidade/espiritualidade e maior capacidade de resiliência e menor risco de burnout.
Algumas cardiopatias apresentam estreita relação com a síndrome de burnout, marcada pelo esgotamento físico e mental em situações de trabalho desgastante, que demandam muita competitividade, responsabilidade ou excesso de carga horária. Atualmente, o Brasil ocupa o segundo lugar entre os países com maior índice de burnout, com 30% de incidência entre a população economicamente ativa, ficando atrás somente do Japão.
No hospital em questão, os colaboradores mais religiosos/espiritualizados manifestavam maior resiliência e, consequentemente, tinham mais recursos para lidar com as situações desafiadoras e estressantes e, por conseguinte, eram menos afetados pela síndrome. Também foram encontradas correlações positivas entre práticas religiosas e ações como o perdão e maior realização profissional.
Outra pesquisa investigou o modelo estrutural relacionado ao papel da espiritualidade e da resiliência na ansiedade entre idosos com doenças crônicas. O estudo concluiu que esses fatores tendem a ajudá-los a ter mais satisfação com a vida, sendo o efeito da espiritualidade mais forte do que a resiliência nesse contexto. Na comparação entre participantes espiritualizados e não espiritualizados, no primeiro grupo havia 34% a mais de idosos satisfeitos com a própria realidade, sem quadro clínico de estresse, ansiedade ou depressão.
No último congresso da American College of Cardiology, em Atlanta (EUA), foi apresentado o estudo brasileiro FEEL. O trabalho mostrou que intervenções por meio da espiritualidade podem levar à redução da pressão arterial e melhoria da função endotelial (endotélio é o tecido que reveste o interior dos vasos sanguíneos). Ambos são componentes importantes na gênese das doenças cardiovasculares.
O achado revela o potencial da espiritualidade na prevenção e no controle de doenças. Tão importante é o tema que a Sociedade Brasileira de Cardiologia, já em 2019, publicou uma diretriz dedicada exclusivamente a abordar a espiritualidade para prevenção dessas condições.
O elo com depressão e cuidados paliativos
Estimativas indicam que 300 milhões de pessoas no mundo sofrem com depressão e 10% da população tem probabilidade de desenvolver a doença ao longo da vida. Entre os portadores de problemas cardíacos, 42% apresentam maior frequência de sintomas depressivos entre os 50 e 59 anos.
Esse maior percentual de acometidos pode vir justamente em resposta ao diagnóstico, uma vez que tal fato irá mudar sua rotina, incluindo relações pessoais e de trabalho.
Desse modo, vale ressaltar a importância do papel da espiritualidade no contexto da saúde e também nos cuidados paliativos: o acolhimento, a inserção da família no contexto do cuidado e o acompanhamento próximo são fundamentais para minimizar sintomas de menos valia, perda de sentido da vida, tristeza sustentada, desesperança e perda de energia, que podem agravar a condição clínica.
É importante lembrar que a oferta de cuidados paliativos inclui pessoas com doenças crônicas e também com diagnósticos que modificam o curso da vida e estão fora de possibilidades terapêuticas de cura, entre elas as doenças cardiovasculares. Nessas circunstâncias, a espiritualidade funciona como um divisor de águas entre o abatimento e a vontade de seguir em frente e levar a vida da melhor forma possível.
Devido a seu potencial terapêutico e impacto na prática clínica, o tema será debatido no próximo congresso da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp), realizado entre os dias 30 de maio e 1º de junho, na capital paulista.
* Karla Carbonari é médica especialista em psiquiatria e Daniel Dei Santi, cardiologista. Ambos integram o Grupo de Estudos de Cuidados Paliativos da SOCESP – Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo