Poetas usam muros para provocar quem passa na rua. Em Brasília um rabiscou: “Vou me ater aos fatos”. No Rio outro pichou: “Nada é permanente, exceto a mudança”.
Em Belém, governantes dos países amazônicos demonstraram que mudança é, de fato, uma das palavras mais sedutoras da política. Lula decretou com o entusiasmo de quem refunda o país a cada nascer do sol: “A partir desse encontro as coisas vão mudar, as discussões sobre as questões da Amazônia serão medidas a partir de agora, entre antes e depois dessa reunião”.
Amazônia virou sinônimo da utopia necessária na política da época de terra fervendo, oceanos febris e geleiras derretendo. A reunião de Belém, nesse sentido, pode ser vista como um avanço, a renovação do pacto assinado num julho de 45 anos atrás pelo Brasil e oito países vizinhos com a promessa de “desenvolvimento harmonioso e integrado” da região, uma das mais ricas em biodiversidade.
Quase nada aconteceu desde então, por absoluta falta de interesse dos governos. No caso brasileiro, a indiferença de Brasília foi permeada pelos devaneios de uma esdrúxula aliança da direita militar e da esquerda militante sobre a invasão “imperialista” dessa metade do território nacional (Essa coalizão foi, também, responsável pela reserva de mercado na lei de informática, de 1984, que marginalizou o país no início revolução digital.)
A retomada da conversa em Belém mostrou como os governos amazônicos ainda patinam em coisas fundamentais, em contraste com a mobilização social — as organizações ambientais invadiram as ruas da capital paraense com mais de 10 000 militantes não residentes.
Ficou nítida a preferência dos governantes pela retórica pontuada de excesso de voluntarismo. Ficou cristalina, também, a escassez de confiança para iniciativas conjuntas que propiciem, efetivamente, a abertura da nova fronteira de negócios na transição energética, numa área de rarefeito conhecimento científico e extensa o suficiente para abrigar metade da Europa apenas do lado brasileiro.
Lula encontrou um palco novo para vazar a ambição de reconhecimento de liderança num mundo que vem sendo reformatado no confronto comercial e tecnológico dos Estados Unidos com a China.
“Lula e governantes falaram do futuro e pouco disseram sobre a realidade”
Mais uma vez foi contestado na sua ambivalência, notória na abordagem de questões essenciais. Gustavo Petro, presidente da Colômbia, questionou-lhe o desejo de exploração de petróleo e gás na bacia amazônica. Propôs banir as atividades baseadas em combustíveis fósseis e fazer da Amazônia uma vitrine da transição energética mundial.
Lula sonha com a Petrobras anunciando um novo “pré-sal” na foz do Rio Amazonas, porque os poços abertos no Sudeste — o “passaporte para o futuro”, como dizia nas campanhas presidenciais de 2006 e 2010 — têm prazo de validade na virada da década.
Ele flutua com a Petrobras num oceano de incertezas sobre a existência de óleo na chamada margem equatorial, entre o Amapá e o Rio Grande do Norte. Já o colombiano Petro não tem propostas consistentes sobre como gerar riqueza numa economia sem petróleo e gás.
Curioso é que nessa reunião presidencial sobre o futuro houve um rarefeito destaque às emergências amazônicas do presente, como a preguiça dos governos federal, estaduais e municipais do Brasil no avanço dos serviços de água, de coleta e de tratamento de esgoto na região.
Lula discursou sobre meio ambiente numa Belém carente de saneamento básico: a rede de esgotos não alcança um quinto do milhão e meio de habitantes e um terço segue a vida sem acesso ao sistema de água tratada.
Antes de ele chegar à Presidência, em 2003, as principais cidades da Amazônia se destacavam entre as 100 com piores condições sanitárias do país. Desde então, o Brasil teve quatro presidentes. Lula está no terceiro governo, mas Belém, Ananindeua, Santarém, Marabá, Manaus, Macapá, Porto Velho e Rio Branco continuam onde sempre estiveram — na penúria ambiental e sanitária.
Nas capitais do Amapá e de Rondônia, por exemplo, a rede de esgotos não chega a um décimo das residências. A ausência de coordenação governamental levou a extremos como o de Macapá, onde os investimentos estatais em saneamento básico estão estagnados na faixa de 5% daquilo que os próprios governos estabeleceram como mínimo necessário (203 reais por habitante ao ano).
Belos discursos sobre a Amazônia e o futuro do clima no planeta podem emoldurar a nova utopia política, mas só ganham efetividade quando governos se empenharem na mudança desse meio ambiente degradado para os humanos das cidades amazônicas.
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Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2023, edição nº 2854