Um pacto inédito para restaurar o orçamento das Forças Armadas
Governo e oposição se unem para garantir verba bilionária para compra de armas e munições durante cinco anos, à margem do sistema de controle fiscal
Em março do ano passado, durante uma visita do presidente da França, Emmanuel Macron, um agente comercial francês apresentou ao Ministério da Defesa um cardápio de ofertas de armamentos, com helicópteros em destaque.
Foi recebido pelo ministro José Múcio, mas não houve “química” entre eles. “O cidadão não era simpático”, explicou a parlamentares.
Aos 77 anos, Múcio já fez quase tudo na política. É reconhecido pela habilidade em evitar confusões, mas, às vezes, são inevitáveis — exemplo: ele assumiu a Defesa com uma tentativa de golpe de estado em andamento, frustrada porque o Exército e a Aeronáutica rejeitaram.
Na reunião, o vendedor de armas lhe pareceu agressivo: “Reclamou muito. Estava zangado e brabo, porque nós não estávamos comprando helicópteros produzidos pela França…”
Quando começou a falar alto, Múcio interrompeu: “Eu vou fazer uma coisa, eu vou resolver o seguinte: nós não vamos comprar nenhum helicóptero do senhor!”
A sala ficou em silêncio. O francês retomou o fôlego: “E não vai comprar por quê?”
“Aí, eu disse: ‘Eu não vou comprar porque, para você me vender, está me tratando desse jeito, imagine quando eu não lhe pagar a primeira prestação! Então, nós não vamos fazer mais negócio nenhum. Eu não quero arrumar encrenca com você. De maneira que não compro, porque já lhe adianto que não vou lhe pagar. Então, vamos sair daqui amigos.”
O vendedor de armas voltou a Paris sem contratos e, provavelmente, sem entender a piada do ministro da Defesa. Nela havia uma dose de sinceridade sobre a realidade do caixa das Forças Armadas: de cada dez reais disponíveis no orçamento, oito reais são consumidos na folha de pessoal — na proporção de um terço para a tropa em atividade e dois terços para inativos.
O panorama orçamento sugere um velho problema de gestão nas áreas militares. Múcio nunca admitiu, mas passou os últimos dois anos argumentando com deputados e senadores sobre a queda nos investimentos: “Se nós investirmos, como os outros países estão investindo em Defesa, esse percentual (de despesas com pessoal) que é de 80% (do orçamento) vai para 60%, para 50%. Acontece que há muito tempo nós não estamos investindo em equipamento. Um percentual da nossa frota (aérea) está parado, completamente parado. Culpa de quem? Culpa da prioridade que não foi dada à Defesa. E como nós estamos (em desequilíbrio nas contas públicas), nunca se dará prioridade à defesa.”
O problema principal é a imprevisibilidade orçamentária, insistiu em audiência no Senado no mês passado: “Nós compramos um equipamento que tem prazo de entrega de seis anos e quando muda o governo, o dinheiro não vem, e nós não pagamos a primeira prestação. Não temos previsibilidade do que podemos gastar. Precisamos não é de 2% (de despesas militares em relação ao PIB). Que seja 1,5% (atualmente está em 1% do PIB). Precisamos saber é se vamos pagar a primeira prestação da munição, do avião, do submarino, do radar do Sisfron (sistema de vigilância de fronteira). Hoje, com 1%, a gente não paga nada.”
“Nós postergamos as nossas compras” — prosseguiu. “Repare a compra de aviões. Nós compramos para receber em 2025; nós postergamos para 2033. Estamos atrasados oito anos com a compra dos (caças) Gripen. Os juros que nós pagamos equivalem a seis aviões. O (aviões cargueiros) KC-390 nós adiamos a entrega prevista para 2026, porque não temos dinheiro; ficou para 2035. Os juros vão dar dois aviões. Postergamos, também, os pagamentos da Marinha. Os juros equivalem a dois submarinos.”
A penúria tem traços caricatos: aviões de combate no chão, arsenais com munição para um mês e meio-expediente nos quartéis para reduzir gastos com as tropas. É parte do mosaico de evidências de uma grave crise no setor público. Foi diagnosticada em todos os governos desde a redemocratização, mas até hoje não tem perspectiva de resolução.
José Múcio, porém, abriu um atalho no Congresso para mitigar os efeitos dessa crise nos quartéis. Costurou um inédito acordo político para garantir cinco anos de investimentos nas Forças Armadas.
Resultado: a Defesa vai receber 5 bilhões de reais por ano para compras, o equivalente a 1 bilhão de dólares anuais para equipamentos, peças, componentes e munições.
O valor é extraordinário no quadro das atuais insuficiências governamentais. Mais relevante, no entanto, foi a costura da coalizão governo-oposição no interesse da Defesa.
Nesta quarta-feira (22/10), o Senado aprovou (por 57 votos a 4) o projeto garantindo o rearmamento. Detalhe: esse dinheiro vai fluir por cinco anos à margem do sistema de controle fiscal, questão previamente decidida por Múcio em reuniões com Lula, os ministros da Fazenda e da Casa Civil.
O projeto legislativo está assinado pelo líder da oposição no Senado, Carlos Portinho, do Partido Liberal do Rio, com relatoria do líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues, do Partido dos Trabalhadores do Amapá. Agora será votado na Câmara.
Três anos depois do tumulto provocado por Jair Bolsonaro com a sua frustrada tentativa de golpe estado, governo e Congresso fazem um pacto para restauração do orçamento das Forças Armadas. Com discrição, sem ruídos eleitorais.
Múcio segue dizendo que sua “missão” no Ministério da Defesa é evitar confusão. E conta uma história: “Logo que assumi, tinha um grupo de generais conversando… E eu disse: ‘Olhem, fiquem tranquilos que eu não sou homem de briga. Eu aprendi com um vereador de Capoeira, lá do interior de Pernambuco. Ele virou para mim e disse: ‘Doutor, na hora da confusão, o meu lema é mato ou morro’. Aí, um general disse: ‘Mas o senhor não tem essa fama…’ E eu disse: ‘Exatamente, eu corro para o mato ou corro para o morro, mas na briga não fico de jeito nenhum.’”
O novo presente que a direita pode entregar em breve para o governo Lula
O único recado de Trump sobre Bolsonaro na reunião com Lula na Malásia
Fortaleza x Flamengo no Brasileirão: onde assistir, horário e escalações
Real Madrid x Barcelona: onde assistir, horário e escalações
O cálculo do governo para o fim da Lei Magnitsky contra Alexandre de Moraes

