Lula lança governo e PT no debate sobre limites do Supremo
Ele sabe o que faz ao provocar discussão sobre voto secreto no STF, mas não está claro se governo tem ou vai ter projeto de reforma do Judiciário
Lula está fazendo uma das coisas que mais gosta na política: provocar.
Desafia quando propõe taxar aqueles que elegeu adversários (os mais ricos) e, ao mesmo tempo, tenta ampliar espaços de poder dos que escolheu como aliados políticos (ativistas de minorias).
Provoca, também, com propostas para reformar a ONU, o FMI, o Mercosul, o G20, o G77… E, agora, ao estimular de forma enviesada um debate reformista sobre limites do Supremo Tribunal Federal, que se tornou um grande protagonista na política nas últimas duas décadas em que Lula esteve fora do poder.
Numa entrevista ao canal de televisão governo, nesta terça-feira (5/9), fez um comentário aparentemente displicente e desdenhável em defesa do voto secreto dos juízes do Supremo, que julgam atos dos outros poderes da República, suas decisões e limites — inclusive, se existem limites ao próprio poder.
“A sociedade”, disse, “não tem que saber como vota um ministro da Suprema Corte. Não acho que o cara [o cidadão] precisa saber. Votou a maioria, não precisa ninguém saber. Porque aí cada um que perde fica com raiva, cada um que ganha fica feliz”.
O Supremo livrou Lula no mensalão, referendou sua condenação no caso da corrupção na Petrobras, a prisão por 580 dias e o deixou inelegível em 2018. Na sequência, anulou a sentença alegando razões processuais, libertou-o, devolveu-lhe as condições legais para se eleger e ele venceu a disputa presidencial do ano passado.
Por ironia, seu adversário eleitoral, Jair Bolsonaro, está enredado em meia centena de processos, parte deles no Supremo. Nos intervalos das visitas às delegacias policiais, para depoimentos, Bolsonaro assiste à discussão em praça pública sobre a possibilidade da sua prisão por crimes comuns (fraude e roubo), políticos (tentativa de golpe de estado), sanitários e contra a humanidade (omissão deliberada e desinformação na pandemia).
Tudo isso aconteceu em processos públicos, com atos, debates e decisões judiciais transmitidas ao vivo na televisão e em votos escritos, eventualmente no chamado plenário virtual do STF, divulgados e decantados em análises feitas à luz do sol, com liberdade de crítica de torcidas organizadas, incluídas as ruidosas do lulismo e do bolsonarismo.
A sugestão de Lula sobre voto secreto no STF é essencialmente regressiva e tem como efeito prático amplificar um debate reformista já em andamento em outro poder, o Legislativo, sobre a imposição de limites ao Supremo. Nele, a minoria bolsonarista radical levanta a voz nos plenários da Câmara e do Senado, sob o silêncio sorridente da maioria governista e da oposição moderada.
No Palácio do Planalto e no Congresso predomina incômodo com o protagonismo de juízes que não chegaram ao poder pelo voto, não podem ser removidos pelo voto, e, como escreve Diego Werneck Argueles no excelente livro O Supremo, sobre os quais não se tem “sequer uma ideia clara da extensão de seus poderes, já que o tribunal ocasionalmente expande suas competências, criando formas de atuação”. Argueles acrescenta: “Os ministros do STF são juízes, mas dizer que seu poder envolve ‘julgar’ não parece abranger as múltiplas maneiras pelas quais são decisivos para a política nacional.”
Juízes de tribunais superiores são políticos de toga. Lula sabe o que faz quando provoca a discussão sobre o voto secreto no Supremo. O que ainda não está claro é se, ao lançar o governo e o PT nesse debate, já tem ou planeja ter um projeto de reforma do Judiciário. Não faltam petistas e lulistas com proposições sobre como limitar o poder de quem julga os outros poderes, mas até agora se mantinham quietos, intimidados pelo tumulto permanente dos bolsonaristas radicais.
Colocar na mesa essa ideia extemporânea e fundamentalmente regressiva, no entanto, parece ser útil a Lula numa etapa de dificuldades dentro do governo e do PT por causa das restrições ao aumento de gastos públicos e, também, da partilha do governo com a centro-direita e o grupo do Centrão de Arthur Lira, presidente da Câmara. É como se ele estivesse pedindo: “Não olhem para o Planalto e o Congresso, olhem para o outro lado da Praça dos Três Poderes.”