A guerra de Vladimir Putin se tornou um desafio para Jair Bolsonaro e Lula.
Adversários sempre veementes na retórica, eles escolheram a ambiguidade para falar nos comícios sobre a invasão da Ucrânia.
Bolsonaro não esconde sua admiração pelo presidente russo. Dez dias antes da invasão da Ucrânia, viajou a Moscou com a ideia de obter um acordo com Putin para garantia de abastecimento de fertilizantes às lavouras brasileiras. Seria um trunfo junto ao eleitorado cuja vida gravita em torno do agronegócio (26% do PIB nacional). Não conseguiu.
Levou, também, propostas de negócios governamentais na área nuclear — de centrais modulares de pequeno porte à cooperação em equipamentos bélicos. No clima da invasão iminente, tudo ficou congelado. Até onde se sabe, Bolsonaro voltou com apenas um memorando legitimando a troca de informações entre serviços secretos do Brasil e da Rússia.
A Rússia devasta a Ucrânia, mas Bolsonaro segue condescendente com Putin e negando a evidência do projeto expansionista, como tem dito: “Eu entendo que não há interesse por parte do líder russo de praticar um massacre. Ele está se empenhando em duas regiões do Sul da Ucrânia, onde, em referendo, mais de 90% da população quis se tornar independente, se aproximando da Rússia.”
Numa concessão presidencial, permitiu ao Itamaraty votar contra a ofensiva da Rússia no Conselho de Segurança da ONU, condicionando-a à apresentação de ressalvas e críticas veladas à Otan, aliança militar dos Estados Unidos-Europa.
Ontem, num comício em Brasília, relativizou as consequências diretas do conflito para o Brasil — “elas são para todos” —, mas aplicou a retórica de guerra ao front eleitoral doméstico: “O nosso inimigo não é externo, é o interno. Não é uma luta da esquerda contra a direita, é uma luta do bem contra o mal, e nós vamos vencer.”
Lula percorreu trilha idêntica. Num comício do Partido Comunista do Brasil em Niterói, no sábado, relativizou o papel de Putin, a invasão militar e a destruição de um país com cerca de dois mil anos de existência.
Primeiro, reivindicou para “o Lula” — como se refere a si mesmo — um hipotético papel de pacificador. Se já fosse presidente “poderia ter interferido” na questão ucraniana, comentou. Quando era presidente se voluntariou na negociação de um acordo nuclear entre o Irã e os Estados Unidos. Deu errado, e pôs a conta do fracasso no governo americano.
Lula disse à plateia reunida pelo PCdoB “não concordar” com a invasão de outro Estado. E limitou-se a lamentar “profundamente” a invasão da Ucrânia.
A partir daí, dedicou-se a uma extensa crítica aos governos dos Estados Unidos e da União Europeia. Assumiu a defesa de Putin ao usar o argumento básico do Kremlin para justificar a guerra: a ampliação da Otan no Leste europeu.
Nada disse sobre os bombardeios, as vítimas e os quase três milhões de refugiados, na contagem da ONU. Preferiu fazer cobranças aos governos europeus e americano: “Por que que a Europa não tornou uma atitude [na Otan]? Por que que o [Joe] Biden não tomou atitude?”
Deu razão ao líder russo: “Por que queriam obrigar o Putin a aceitar a Otan, se em 1961 os EUA não aceitaram que a Rússia colocasse mísseis em Cuba? Isso evitou a IIIª Guerra Mundial.”
Acusou os Estados Unidos de demonizarem Putin: “Eu estou cansado de ver essa gente construir monstros. Controem a narrativa… Depois que os EUA perderam a narrativa da guerra do Vietnã, depois que eles perderam a guerra do Vietnã, eles nunca mais perderam uma narrativa. Primeiro, eles transformam o inimigo em bandido, em terrorista.”
Acrescentou: “Ô gente, em 2003 o [George W.] Bush me convidou para ir para a guerra do Iraque. Eu falei: ‘Ô Bush, eu não conheço Saddam Hussein; eu nunca visitei o Iraque; o Saddam nunca falou mal de mim e eu não conheço ele. Porque, porra, eu tenho que brigar com Saddam Hussein?’ Ah, porque que eu vou brigar com os outros?”
A diplomacia brasileira, no governo Lula, acertou na equidistância da guerra dos EUA no Iraque. Lula não defendeu Bush ou Saddam, nem foi condescendente, relativizou ou adotou argumentos que uma das partes usou para justificar o massacre de civis num delírio bélico pelo controle de reservas de petróleo.
Diante da tragédia de uma guerra, que já transformou o mundo, os candidatos Lula e Bolsonaro optaram por um notável excesso de ambiguidade retórica, com aparência de neutralidade. São dois candidatos que se meteram numa saia-justa eleitoral. Problema deles.
Mas o exagero na passividade em questões civilizatórias vitais como proposta de política externa nacionalista e “antiimperialista”, adoçada pela suavidade com que resolveram acarinhar o autoritário Putin na arquitetura da destruição da Ucrânia, pode multiplicar os riscos para o país no novo jogo de poder global.