Gilmar Mendes vê “rapinagem institucional” no centro do poder
Para o juiz do Supremo, "a máquina de desinformação não é combatida porque as autoridades competentes foram capturadas"

Há 37 anos no serviço público, os últimos vinte numa das onze cadeiras de juiz do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes conhece as pedras, as sombras, os tapetes e as misérias da Praça dos Três Poderes.
Ontem, no plenário do Supremo, ele usou duas expressões para definir a cena política às vésperas do segundo turno eleitoral — rapinagem institucional e anomia.
Anomia, ensinam os dicionários, é sinônimo de anarquia, desorganização. Resume a “conjuntura de expiação” do Brasil num processo de “decadência democrática” cujas causas são variadas, ele acha. Destacou uma delas: “Omissões calculadas e conivências oportunistas das autoridades constituídas.”
Falava sobre a escassez de valores éticos em áreas-chave do poder: “Agentes e instituições que possuem o dever de agir, de proteger o Estado Democrático de Direito; agentes e instituições para os quais a República lhes concedera papel altivo – faltam-lhes, entretanto, o brio necessário. Cobiçam papéis que não lhes foram dados.”
Em consequência, observou, instaura-se “um ambiente de rapinagem institucional, no contexto do qual muitos avistam a percepção de dividendos.”
Para esses, acha, “interessa um Supremo Tribunal Federal fraco. E para enfraquecer a instituição, todo meio é válido – nessa lógica. Ameaçar a vida de ministros e de seus familiares, financiar quadrilhas que acampam na Esplanada dos Ministérios, bem como incitar seus comparsas a destruir o Tribunal – tudo isso ‘é política’.”
Continuou: “Aqueles que exercem atos concretos de destruição da ordem estabelecida apontam o dedo ao Tribunal encarregado de zelar pela Constituição e seus direitos fundamentais. Como a máquina de desinformação não é combatida — porque as autoridades competentes foram capturadas—, a anomia se retroalimenta. Os fatos passam a não importar. Nessa realidade paralela, os que militam por ditadura apresentam-se como defensores da liberdade.”
Como outros no plenário, ele demonstrava solidariedade à juíza Cármen Lúcia, insultada pelo ex-deputado Roberto Jefferson, preso depois de atacar com tiros de fuzil e granadas uma equipe de policiais federais.
Enquanto falava, Jair Bolsonaro desembarcava em Brasília. Convocara uma reunião de ministros e de chefes das Forças Armadas para tratar de assuntos da sua campanha à reeleição — tema de interesse privado e não público.
Bolsonaro havia apresentado uma queixa ao Tribunal Superior Eleitoral sobre supostas irregularidades na veiculação de peças de propaganda da sua candidatura em oito das quase 5 mil rádios do país (0,16% do total). Por lei, o TSE nada tem a ver com a fiscalização, obrigatoriamente feita pelos partidos e candidatos.
O juiz Alexandre de Moraes, presidente do TSE, rejeitou a reclamação, com base em análises de especialistas independentes e do tribunal. Considerou-a “inepta” porque “nem sequer identifica dias, horários e canais de rádio”. Mandou investigar o uso de recursos do Fundo Partidário na manobra por suspeitar que dinheiro público pode ter sido usado para financiar nova tentativa de tumulto do processo eleitoral.
Bolsonaro não gostou da decisão e, por isso, convocou ministros e chefes militares. Antes do primeiro turno, ele se queixava das urnas eletrônicas. Depois da eleição, pôs no alvo as pesquisas eleitorais. Agora, quatro dias antes da decisão, reclama de oito das 5 mil rádios. “Vou às últimas consequências”, anunciou. Não explicou quais seriam.
No plenário do Supremo, o juiz Gilmar Mendes já dera seu recado: “Como uma mentira dita mil vezes começa a assumir tons de verdade, qualquer decisão do Tribunal que busque proteger o Estado Democrático de Direito passa a ser descrita, histericamente, como um abuso. É assim que o Poder Judiciário, um poder desarmado, consegue ser pintado como ‘golpista’.”
“Esse tipo sociológico” – acrescentou – foi percebido por um grande observador do gênero humano, [o escritor François] La Rochefoucauld: aquele que é autenticamente honesto não se preocupa com nada ou ninguém; já o falso honesto é mestre em ocultar seus defeitos, seja em face dos outros, seja até de si mesmo. Ouso complementar: para tanto o desonesto se vale, à exaustão, do estratagema sórdido de apontar nos outros os defeitos que lhes são inerentes.”