Quatro em cada dez argentinos vivem na pobreza, e mais de 10% sobrevivem na indigência.
Pela primeira vez, há mais pobres do outro lado da fronteira do que no Brasil.
Um em cada três brasileiros é pobre, e o número de indigentes beira 8% da população.
Em ambos os países, donos das maiores economias da América do Sul, o empobrecimento avançou com celeridade nas últimas duas décadas.
É notável que, por dois terços do tempo, isso tenha acontecido sob governos eleitos com projetos de redução das desigualdades e resgate social, conduzidos por partidos hegemônicos à esquerda: PT no Brasil e partido peronista na Argentina.
É relevante, também, observar que no restante do calendário essas fábricas de pobreza tenham se mantido a pleno vapor sob governos dogmaticamente adversários, empenhados no reformismo, mas com propostas distintas para reverter a agonia da degradação sistemática e contínua da renda de argentinos e brasileiros.
Algo deu errado nos dois lados da fronteira. E o eleitorado resolveu responder à crise de liderança nesses países elegendo para a Presidência personagens estranhos aos grupos que ascenderam na política regional no ciclo pós-ditadura.
Pode-se discutir sobre o papel de Jair Bolsonaro e de Javier Milei na aglutinação e autoestima da extrema direita. Será inútil, até porque se diferenciam na essência. Bolsonaro é um radical do militarismo arcaico, com um longo histórico de defesa da intervenção do Estado na economia. Milei é um economista formado no fundamentalismo da doutrina sobre o poder do mercado, e faz questão de apresentar-se como um talibã do ultraliberalismo.
Os governos da América do Sul faliram nas ditaduras do século passado e ainda não conseguiram superar o desequilíbrio nas contas públicas. No Brasil e na Argentina, elites surfam na retórica liberalizante, mas continuam lutando heroicamente pela dependência do Estado. Todos são liberais, porém viciados em subsídios e incentivos estatais, como realça o projeto de reforma tributária que se negocia em Brasília.
“O avanço da pobreza no Brasil e na Argentina corrói e desmonta governos”
A cada eleição, renovam-se promessas de abertura dos portais da prosperidade — “colocar os pobres no orçamento”, na expressão recorrente —, mas os problemas estruturais dos estados nacionais continuam a estimular a expansão acelerada das linhas de produção de pobreza, ampliando desigualdades e derrubando pela metade a renda da maioria das famílias nos dois lados da fronteira. Não se vê preocupação efetiva com as razões do empenho de 40% dos orçamentos na rolagem da dívida pública, nem com a eficácia no uso dos recursos públicos restantes, mais restritos a cada ano.
No Brasil, o protesto contra essa “ordem” política chegou às ruas em junho de 2013, mas, por razões que nem a razão explica, esquerda e direita preferiram abstrair a análise das motivações e dedicar-se à concentração de energia num embate de mútua deslegitimação política para ver quem sangra mais rápido.
No Brasil de 2018 deu Bolsonaro, ano passado deu Lula. O líder petista ganhou por margem mínima (1,8 ponto percentual) e seu desempenho em Minas Gerais foi simbólico: sua vantagem de 563 000 votos no primeiro turno encolheu para 49 000 na segunda rodada, apenas três semanas depois.
Na Argentina, semana passada, Milei elegeu-se com larga dianteira em vinte das 23 províncias. Obteve 90% dos votos em algumas e ficou com metade do eleitorado de Buenos Aires, reconhecido pilar do peronismo há 78 anos.
Nos dois países, parcela significativa do eleitorado empobrecido deixou evidente a exaustão com a insuficiência dos programas sociais paliativos e a inexistência de perspectivas realistas de prosperidade individual. Paradoxalmente, partidos e candidatos estimularam o voto pela rejeição ao adversário — entre argentinos chegou-se ao empate (50%) em repúdio na quase totalidade das pesquisas antes do segundo turno.
Nos lados da fronteira, a massa de eleitores empobrecidos, sobrevivente em pequenos negócios, aderiu aos acenos de redução do custo operacional do Estado de bem-estar social, cujo peso tem sido crescente nos orçamentos familiares. “Lá e cá, a esquerda decidiu abandonar a reflexão sobre a realidade socioeconômica e deu prioridade à abordagem de costumes, de políticas identitárias”, observa o sociólogo Creomar de Souza. “Isso choca o pessoal que chega ao dia 30 de cada mês sem dinheiro e com contas para pagar.”
Não há fórmula mágica. O problema central é o empobrecimento. Sem renovação das ideias as ofertas eleitorais tornam-se irrelevantes, porque são originalmente ineficazes. E, na irrelevância, governos e partidos tornam-se dispensáveis.
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Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2023, edição nº 2869