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Em pane

Críticas do governo no apagão são eloquentes sobre sua leniência com a caríssima conta de luz

Por José Casado Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 18 out 2024, 11h42 - Publicado em 18 out 2024, 06h00
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  • Derrotados pelas lapadas de ventania molhada, se refugiaram sob a marquise de um botequim na Rua da Consolação, o Caminho dos Pinheiros usado pelos viajantes na época da Colônia para alcançar as cidades do Oeste paulista. Meia dúzia desembarcou de motos, um veio de bicicleta com o baú térmico nas costas.

    — Tá forte demais, quase caí — diz Roberto, 22 anos, depois de recostar a moto vermelha de 125 cilindradas na parede curva da esquina com a Rua Dona Antônia de Queirós. Acena para a motoqueira recém-chegada. É um grupo de profissionais de entregas, mais ou menos na mesma idade.

    — Vai atrasar, o pessoal não reclama quando acontece?

    Roberto sorri: — Nada, nada, a maioria dos clientes fica de boa, não tem como cruzar a cidade assim…

    A tempestade enlouquece sinais de trânsito, e motoristas buzinam sem parar. — Quantas horas vocês trabalham por dia?

    — Então, de seis a oito horas, faço dez a doze entregas. Essa região (Centro, Higienópolis e Jardins) é a melhor, tem pedido toda hora e o pessoal dá gorjeta…

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    — Mas dá pra viver?

    — Dá pra segurar bem. Trabalho seis dias por semana, faço entre 200 e 250 (reais) por dia. Pago 175 de aluguel da moto por semana, o da bicicleta ali deve pagar metade. Não trabalho pro iFood, mas pra empresa que atende todos os aplicativos. Tem mês que dá 5 000, tem mês que chega a 6 000… Também tem a bolsa (Bolsa Família) da mulher.

    — Não seria melhor empregado, com carteira, plano de saúde…

    — Nem pensar — ele ri, quase gargalhando. — A gente quer distância de governo… Meu, aqui eu é que faço o horário, não tenho chefe. Esse negócio de carteira, não dá. Tem muito imposto, muita papelada, zero liberdade.

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    — Mas como o governo poderia ajudar vocês?

    — Ficando longe da gente…

    — É isso aí — Maíra solta o riso, no primeiro e lacônico comentário que a timidez lhe permite.

    — Como resolve saúde, previdência, aposentadoria?

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    — Bem, saúde a gente vai no posto, lá em Ermelino Matarazzo… — bairro operário da Zona Leste, cujo nome homenageia um dos filhos de Francesco Matarazzo, italiano que no século passado foi um dos empresários mais ricos do mundo. — Aposentar é pra velho, e vejo todo dia na minha família: trabalharam de carteira a vida toda e tão aí, dependendo do governo… Eu, nas entregas, tenho meu apartamento (subsidiado pelo Estado) desde que meu filho nasceu.

    “Críticas do governo no apagão são eloquentes sobre sua leniência com a caríssima conta de luz”

    O vento chicoteia a chuva. Ele telefona para casa e berra, por causa do buzinaço ensandecido no tráfego imobilizado. Seu bairro está sem luz, descobre. É mais um apagão na rede da Enel, autoproclamada “empresa líder da geopolítica da Itália”. A ineficiência no serviço atravessa a semana de milhões de pessoas, invade a disputa eleitoral pela prefeitura paulistana e contrasta com os ganhos de lucratividade somados pela matriz: o resultado operacional no Brasil aumentou 12% em 2023.

    Governos fazem jogo de cena culpando a empresa, que nada tem de inocente, o que diz mais sobre a leniência estatal do que sobre a qualidade dos serviços de energia. Lula esteve na Itália em junho, se reuniu com executivos da Enel e anunciou a disposição de “renovar o acordo”, o contrato de concessão da empresa.

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    Sobra mistificação. Os brasileiros já pagam uma das contas de luz mais caras do mundo. E 40% do boleto mensal nem é energia, mas fatura de obscuras transações, que governo e Congresso debitam dos bolsos dos consumidores, sob a forma de tributos, subsídios e auxílios variados, para atender a interesses de grupos empresariais e políticos.

    Acender uma lâmpada no Brasil custa quase o dobro do preço pago nos Estados Unidos, França, Reino Unido e Japão, embora a renda dos brasileiros seja até dez vezes mais baixa, segundo a Agência Internacional de Energia e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico. Em paralelo, paga-se um custo muito maior, dissimulado, pela eletricidade usada nas mercadorias consumidas.

    O preço em dólares da energia elétrica para indústria, comércio e serviços no Brasil subiu três vezes mais do que nos EUA nos últimos 22 anos, mostra estudo da Abrace, associação de meia centena de empresas consumidoras. Já o custo do gás natural para brasileiros, nesse período, aumentou mais de 3 000% em comparação com o preço em dólares pago pelos americanos e europeus.

    Resultado: quase metade (48%) do preço do leite que o motoqueiro de Ermelino Matarazzo compra para o filho e mais de um terço (34%) do bife que ele entrega em Higienópolis são apenas custo do serviço ruim de eletricidade — e sem direito a descontar prejuízos do apagão.

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    Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

    Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2024, edição nº 2915

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