Os brasileiros não apenas reconhecem os avanços das últimas três décadas na vida em democracia, como valorizaram o regime democrático na travessia dos anos Jair Bolsonaro, com seus laivos de autoritarismo na Presidência.
Desde 2020 aumentou em 6 pontos percentuais (de 40% para 46%) o apoio à democracia no Brasil, informa a nova pesquisa da série realizada há 28 anos pelo Latinobarômetro, um centro de estudos independente estabelecido no Chile. Entre janeiro e abril foram entrevistadas 19 205 pessoas em dezessete países latino-americanos. Os resultados permitem uma visão panorâmica, atualizada e comparada, sobre as tendências políticas predominantes em cada sociedade.
Um dos aspectos mais relevantes é o nível de satisfação com a democracia. Não tem a ver diretamente com preferências sobre o regime. Trata-se de um indicador de desempenho, medida de eficiência da elite governante, pelo olhar dos governados.
No Brasil, ampla maioria (66%) mostra-se insatisfeita com a incapacidade de sucessivos governos em avançar na resolução das suas necessidades básicas em saúde, educação e renda. E dois terços (70%) acham que os partidos funcionam mal, não cumprem sua função no sistema político.
Esse mau humor com instituições, governantes e representação partidária não é uma peculiaridade verde-amarela. É coerente com o ambiente de desconfiança mensurável em outras nações da América Latina, onde também se tornou perceptível uma erosão progressiva e sistemática do regime democrático durante a última década. Projetos de autocracias têm florescido sob o personalismo dos líderes que debilitam os partidos, cuja legitimidade está em declínio.
Sobram evidências de um ciclo latino-americano de desilusões democráticas, com algum aumento da indiferença sobre o tipo de regime e até da preferência (de 11% para 13%, no caso brasileiro) pelo autoritarismo.
“Corrupção e partidos débeis corroem a democracia na América Latina”
Os pesquisadores do Latinobarômetro definem essa temporada de liquefação política como “recessão”, e alinham interpretações sobre a origem a partir da análise da evolução das percepções dos eleitores no acervo de 473 022 entrevistas pessoais acumuladas desde 1990.
A culpa não é da economia, acham. Crises econômicas sempre influem negativamente, porque aumentam as desigualdades, a dimensão da pobreza e ampliam as tensões na sociedade. Porém, não são o fator principal no declínio da democracia nos países latino-americanos.
Mais relevante, julgam, é a consciência coletiva sobre a deficiência, a incapacidade ou mesmo a incompetência demonstradas pelo Executivo, Legislativo e Judiciário em promover equidade econômica, social e jurídica — com aplicação da lei para todos.
A corrupção, um dos traços da prevalência do personalismo no modo de fazer política, o uso e o abuso do poder têm peso específico nesse processo que resulta numa sabotagem do regime democrático nas sociedades latino-americanas.
Está-se diante de uma crise da elite governante desses países. E ela deriva em outra, a crise de representação política. Não é casual que 21 presidentes tenham sido condenados por corrupção em nove países, entre a centena de eleitos na região desde os anos 90. São vinte os presidentes que tiveram mandatos interrompidos.
Caso extremo é o do Peru. Teve cinco presidentes a cada onze meses, na média, entre março de 2018 e dezembro de 2022. Todos os ex-presidentes peruanos vivos, democraticamente eleitos, estão ou estiveram acusados, presos ou sentenciados por corrupção na versão local da Lava-Jato. Eleições corrompidas com dinheiro, “em especial de uma empresa (Odebrecht), mas não exclusivamente” — lembram —, são uma forma de corroer a vontade e a soberania dos eleitores.
Já não resta espaço (“capital”) na sociedade para absorver erros do Executivo, Legislativo e Judiciário no progresso democrático. Nítido indício do esgotamento da paciência dos eleitores está na contundência da crítica aos partidos. No Brasil, por exemplo, 45% acham que a democracia pode funcionar sem partidos. Na Argentina e no Uruguai apenas 34% pensam assim. Vive-se, de fato, um ciclo recessivo na política latino-americana. Mas as recessões, como as desilusões, não são eternas.
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Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2023, edição nº 2853