O início das investigações sobre a crise humanitária dos ianomâmis, indígenas que habitam áreas do noroeste de Roraima, na fronteira com a Venezuela, provocou um curto-circuito na bancada do Estado no Congresso.
Há suspeitas de corrupção e fraudes em contratos do serviço sanitário para os ianomâmis, mantido pelo Ministério da Saúde. Alguns inquéritos foram abertos pela Polícia Federal no final do ano passado.
O ministério mantém 34 Distritos Sanitários Especiais, conhecidos pela sigla DSEI, responsáveis por serviços de atenção primária. Mais da metade está na Amazônia, onde vivem 99% dos indígenas.
Roraima abriga dois desses distritos, um deles atende 29 mil ianomâmis. Por essa unidade sanitária, nos últimos quatro anos, transitaram 190 milhões de reais.
Nas últimas duas décadas, o distrito de saúde dos ianomâmis entrou na planilha de loteamento das chefias de órgãos federais, usada na barganha de votos da Presidência da República com o Congresso.
São mais de 20 mil cargos disponíveis em áreas como Saúde, Educação e Infraestrutura, entre outros, com relevância variável conforme a localização e o fluxo orçamentário.
No caso dos ianomâmis, o distrito sanitário é vital para a população indígena. É, também, essencial para fornecedores de produtos de saúde no Estado — o fluxo orçamentário é de ou 47,5 milhões de reais por ano. Não é pouco dinheiro, equivale a 8% da receita da prefeitura da capital, Boa Vista.
Com as cenas trágicas de indígenas famélicos nas duas centenas de comunidades ianomâmis exauridas por doenças evitáveis como desnutrição, malária e verminoses, surgiram suspeitas de corrupção e desvios, mapeadas em inquéritos policiais desde novembro.
Políticos locais acusam-se. O senador Telmário Mota, do Pros, denunciou o senador Mecias de Jesus, do Republicanos, como responsável pela “máfia” dominante no distrito sanitário ianomâmi. “Esses ladrões devem ser responsabilizados por esse genocídio e pela morte dessas 570 crianças nos últimos quatro anos” – escreveu.
Mecias lidera o clã Jesus cuja ascensão na política de Roraima é turbinada pela eficiente máquina eleitoral da Igreja Universal, controladora do partido Republicanos.
Seu filho Jhonatan foi eleito para o quarto mandato na Câmara com 6% do total de votos, numa das campanhas mais caras do país, abastecida com recursos públicos do Fundo Eleitoral e, principalmente, do orçamento secreto (154 milhões de reais) — mecanismo de repasse de recursos, sem transparência, adotado no governo Jair Bolsonaro.
Cada voto de Jesus filho em Roraima custou mais de 63 salários mínimos. Ele gastou 7.700 reais por eleitor, sete vezes mais que a renda média da população do estado.
Reeleito, o deputado está em campanha para ser indicado pela Câmara, na próxima semana, a uma vaga de ministro no Tribunal de Contas da União (TCU).
O clã Jesus indicou o atual administrador do distrito sanitário ianomâmi, em parceria com o governador de Roraima, Antonio Denarium (PP). Dois meses antes das eleições, o governador sancionou lei proibindo a destruição de máquinas, helicópteros e aviões apreendidos dentro das áreas de garimpo ilegal no Estado.
Jesus pai, senador, isentou-se de culpa em eventuais desvios financeiros e operacionais no distrito sanitário ianomâmi — uma das suspeitas é de desaparecimento de um terço do estoque de medicamentos básicos. E acusou o ex-senador Romero Jucá, do MDB, por dominar a unidade do Ministério da Saúde “durante 30 anos”. Jucá manteve-se em silêncio. Entre 1986 e 1988, ele presidiu a Funai, órgão federal responsável pela política indigenista. Tentou voltar ao Senado em outubro, mas não conseguiu.
A elite política de Roraima tem sólidos interesses e atua com vigor na defesa da expansão do garimpo de ouro e cassiterita em terras indígenas, principalmente na reserva ianomâmi.
O senador Telmário Mota, por exemplo, não se reelegeu, mas em dezembro, na última semana legislativa, conseguiu bloquear um projeto para fechamento do parque de Jauaperi, mantendo-o aberto à exploração garimpeira.