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A voz da maioria

Na eleição, as mulheres contestam o comando e os vícios masculinos

Por José Casado Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h13 - Publicado em 12 set 2022, 11h00

Saiu de casa cedo, passou no fórum e deixou a petição baseada numa inovadora lei estadual. O juiz aceitou e Celina Guimarães Rosa, 29 anos, professora em Mossoró, Rio Grande do Norte, tornou-se a primeira eleitora brasileira.

Quatro meses depois, Alzira Teixeira Soriano, 32 anos, elegia-se prefeita de Lajes, velha paragem de tropeiros entediados com a monotonia daquele trecho semiárido da Depressão Sertaneja, distante 130 quilômetros de Natal.

Celina e Alzira são referências do “voto de saias”, resultado do ativismo da bióloga Bertha Lutz na Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, que incitava “o rompimento dos tabus e preconceitos relativos à libertação da mulher” no Brasil de 1928.

Quase um século depois, as mulheres exibem força inédita na eleição. Quatro disputam a Presidência da República e cinco a Vice-Presidência. Ocupam 17% das candidaturas aos governos estaduais, 23% ao Senado, 34% à Câmara e 33% às Assembleias Legislativas. Houve avanço significativo, mas a participação das mulheres na representação política continua muito abaixo da dimensão do eleitorado feminino.

Donas de 53% dos votos disponíveis, elas receberam apenas um terço das candidaturas. Aos homens foram reservadas duas de cada três vagas. E assim garantiu-se a continuidade da hegemonia da voz masculina nos partidos, nos governos e nas Casas Legislativas até a próxima eleição.

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Não foi acaso. Homens controlam toda a burocracia partidária e agiram dessa forma para concentrar mais dinheiro do fundo eleitoral nas candidaturas a presidente, governador e senador, onde a presença masculina beira os 80%. Fez-se um “ajuste” de contas, com dribles nas regras de financiamento das vagas obrigatórias (30%) para mulheres na concorrência à Câmara dos Deputados e às Assembleias Legislativas.

O sistema de incentivos estabelecido na legislação para atrair mais candidatas se provou funcional. Mas, também, limitado. “As cotas deveriam ser um piso nas chapas e, na prática, tornaram-se um teto” — constatou a pesquisadora Débora Thomé, coautora do excelente livro Mulheres e Poder.

“Na eleição, elas contestam o comando e os vícios masculinos”

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É irônico. No século passado, quando Bertha Lutz viajava pelo país recrutando pioneiras, oito de cada dez mulheres brasileiras eram analfabetas. Agora, elas têm mais anos de escolaridade que a população masculina, somam metade das crianças na pré-escola, 53% do ensino médio, 57% do ensino superior e 56% dos cursos de mestrado e doutorado. Mesmo assim, eles continuam absolutos no comando político.

A igualdade de gênero permanece à margem da agenda de prioridades nacionais. A força da “ordem” masculina fica eloquente na ausência de programas específicos, e eficientes, para a saúde feminina, assim como na contínua obstrução dentro do Congresso de projetos para a partilha igualitária da estrutura de comando dos partidos sustentada com dinheiro público.

Convenções do patriarcado transparecem, por exemplo, nas dificuldades cotidianas de Lula, Jair Bolsonaro e Ciro Gomes, donos de 80% da preferência na disputa presidencial, em fazer campanha num país onde mulheres são maioria e se mostram mais veementes na reivindicação de paridade de direitos, medida de qualidade da democracia. Eles atravessaram a vida na política falando, basicamente, para homens. Na última quinzena foram surpreendidos pela veemência feminina em entrevistas e debates.

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Bolsonaro se repete no destrato às mulheres. No debate presidencial atacou uma jornalista e provocou Ciro Gomes sobre um episódio de machismo, que retrucou acusando-o de corromper mulheres e filhos. Lula se desviou de “compromissos” com questões relevantes na igualdade de gênero. Perderam a bússola diante de cobranças das candidatas Simone Tebet e Soraya Thronicke. Desde então, o trio de candidatos tateia a comunicação com o eleitorado feminino.

A pandemia foi decisiva ao comportamento mais crítico das mulheres. A grande maioria é pobre, chefia família e ainda não conseguiu recuperar ocupação e renda, geralmente em escala inferior ao dos homens. As pesquisas realçam o julgamento comum e negativo, em diferentes estratos sociais, do descontrole governamental na crise pandêmica. Está na raiz da rejeição recorde a Bolsonaro e, em contraste, da vantagem daquele que é reconhecido como o seu principal adversário eleitoral, Lula.

É salutar essa percepção feminina de que alguma coisa está fora da ordem democrática. Deveria nortear o próximo governo.

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Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 14 de setembro de 2022, edição nº 2806

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