“Coisa jamais vista em qualquer guerra que eu tenha conhecimento”, disse Lula, na semana passada, sobre o massacre de mulheres e crianças na guerra de Israel contra o Hamas. Descontada a eloquência sobre a ignorância, que é parte do truque de sempre cobrar ética aos adversários políticos, a informação está ao alcance dos seus olhos: basta pedir ao Itamaraty os relatórios da Comissão da Verdade e Justiça sobre a Guerra da Tríplice Aliança, do Parlamento do Mercosul, em Montevidéu.
Há três anos, a comissão avança com ajuda de historiadores na coleta de documentos sobre a guerra do Brasil contra o Paraguai, apoiada por Argentina e Uruguai. Tenta reconstruir a história do maior conflito da América do Sul (de 1864 a 1870), cujo epílogo completa 154 anos na próxima sexta-feira, 1º de março, data da execução do líder paraguaio Solano López. É feriado pelo “martírio da raça”.
O expansionismo brasileiro aconteceu com o extermínio de dois terços da população, com a morte de sete de cada dez homens com mais de 12 anos de idade. Foram tomados 30% do território paraguaio. Liquidou-se a identidade política, econômica e cultural do país, inclusive com decreto de proibição da língua nativa (guarani). Além disso, roubaram-se a documentação sobre a guerra e a existência do Estado vizinho nos 327 anos anteriores.
Lula sabe. Século e meio depois, o governo brasileiro ainda mantém sequestrada parte desses papéis. No primeiro governo, em dezembro de 2004, decidiu manter em sigilo os documentos brasileiros e os papéis sequestrados no arquivo nacional, em Assunção. “Pura dinamite”, disse em referência aos crimes de guerra cometidos por tropas, comandantes e aristocracia brasileiras.
Lula, como os antecessores, não pode alegar desconhecimento da catástrofe humanitária provocada pelo expansionismo do Brasil, numa invasão militar planejada por D. Pedro II e executada pelo Conde D’Eu, com apoio dos presidentes Bartolomé Mitre, da Argentina, e Venancio Flores, do Uruguai.
“Lula deveria acabar com o sigilo que ameaça a confiança no Mercosul”
Eles ensinaram o significado da palavra barbárie a Martin McMahon, que na época servia em Assunção como embaixador dos Estados Unidos: “Existem horrores mais cruéis que a fome e desgraças piores que a morte”. A guerra brasileira foi comandada por um psicopata, o Conde d’Eu, genro de Pedro II. Chefe militar da “Tríplice Aliança”, ele ordenou a degola de todos os prisioneiros, como testemunhou o Visconde de Taunay, seu secretário particular. Em agosto de 1869, liderou a invasão de Piribebuy, na época a terceira maior cidade paraguaia. Vencida a batalha, as tropas brasileiras “estriparam homens e meninos pálidos e esqueléticos que ainda estavam vivos”, registrou em diário o capitão Pedro Werlang.
No fim do dia, o Conde d’Eu recebeu a notícia da morte do general brasileiro Mena Barreto, seu amigo. Em vingança, mandou torturar o chefe da guarnição derrotada: açoite em público, seguido de esquartejamento, com braços e mãos atados às rodas de canhões, finalizado com degola diante da família. Depois, os soldados foram reunidos diante do hospital de Piribebuy. Incendiaram o prédio, imolando centenas de paraguaios feridos. Na sequência, passearam pela cidade executando uma degola coletiva.
A tropa brasileira era “a escória”, do tipo “que a sociedade repudia por suas qualidades vis”, registrou o marechal Caxias em correspondência ao Ministério da Guerra do Império (setembro de 1868), que agora está no acervo documental parcialmente recuperado no Parlasul. Foi criado numa iniciativa quase solitária do parlamentar e historiador paraguaio Ricardo Canese, responsável por desvendar, nos anos 1990, alguns dos mistérios bilionários do caixa da Usina Binacional de Itaipu. Historiadores de Paraguai, Argentina, Uruguai e Brasil trabalharam dois anos coletando documentos. Produziram um relatório de 600 páginas para justificar a criação da Comissão da Verdade e Justiça sobre a Guerra da Tríplice Aliança. Ela voltou a funcionar no final de 2022, com o objetivo simbólico de reparação histórica.
O governo brasileiro resiste à exposição dos arquivos próprios e dos sequestrados em Assunção que contam a história dessa guerra imperialista, caracterizada pela liberação da bestialidade no campo de batalha. Lula, se quiser, pode acabar com o sigilo sobre essa documentação de crimes imprescritíveis. “Dinamite pura” é o segredo eterno, ameaça permanente à confiança entre os países do Mercosul.
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Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2024, edição nº 2881